domingo, setembro 24, 2006

Notícias de um Desfiladeiro

Era um decote difícil de ignorar. Os seios eram bem desenhados e o sol tinha feito neles um trabalho uniforme. A blusa era folhada, escura, e tinha como que uns atilhos, que em tempos antigos teriam sido pensados para recatar aquilo que ia ser, nesta reunião de negócios, a omnipresença de uns seios. Quando fora a última vez que aquele par de atilhos se tinham cruzado e desenhado um nó?
Era um dos hóteis de cinco estrelas da Avenida da Boavista e estávamos ali para marcar as salas para um congresso sobre “Análise de Fluxos”. Um tema interessante para mim, porque sou um químico. E era um congresso internacional.
A portadora dos atrás mencionados fazia o favor de, pelo contrário, guardar o seu umbigo para si. Aliás, as escolhas de guarda-roupa sofriam de algum anacronismo, o cinto dourado, grosso, a desenhar a linha de cintura onde hoje em Portugal se exibe preferencialmente os hectogramas a mais. Que certamente por ali estariam. Esta alguma antiguidade no vestir deslocava a minha interlocutora para o seu lugar: ela era um topo de gama nas relações públicas da empresa a que pertencia, e que iria patrocinar o nosso congresso.
Mas ela não falava comigo. Falava com uma colega minha, a organizadora principal do evento. Eu era apenas uma espécie de acompanhante. Eu observava, e tirava apontamentos, desenhos não porque não era o caso. A minha colega lembrava-me a Anabela, aquela cantora do My Fair Lady, não sei se sabem de quem eu falo. O desenho do nariz era o mesmo, a colocação da voz também. Estava sempre à espera que a minha colega começasse a cantar. Não aconteceu. A minha colega não tinha muito peito. A ausência defensiva de decote não retirava ao vestido a elegância que efectivamente tinha. A pasta pousada ao lado no chão denunciava o paradoxo: uma química sem a dita. As sandálias eram ainda de verão, num jogo de cores algo demasiado brasileiro para a ocasião, e deixava ver dedos dos pés compridos, ocorrência curiosa em mulher pequena. Enfim, os dedos dos pés podem sempre sempre encarados como o fim de um corpo que não se deseja. Podemos ali virar as costas e ir embora. Não era o meu caso: tinhamos que escolher as salas. Eu não podia ir embora.
Uma terceira jovem estava ali connosco. Era morena, magra, e pertencia à empresa que trataria do catering organizacional da reunião. Não tenho muito mais para dizer. Era despachada, eficiente, rápida. Tinha um rir tropeçado que não a favorecia. O corpo ladino. Era a melhor calçada de todas, sandálias com salto, prateadas, duas ou três tiras a segurar o pé como lianas.
Mas era difícil reparar nestas coisas todas, decidir se as salas e se as inscrições e remover aqueles seios da frente. A voz, a voz era uma possibilidade de remoção, era como um queixume, um sofrimento, vinda de Lisboa sem ninguém que conduzisse por/para ela, e ter que voltar ainda para uma “reunião de ciclo” – menstrual, pensei? – todos aqueles ensinamentos, todos aqueles conselhos, cedidos a troco de aparentemente nada, tanta experiência... imaginei a voz dela a sentenciar um encontro de amor “então, é assim que isto se acaba?”, ou coisa parecida, e logo depois ouvi o som de facas a serem remexidas...
A nossa interlocutora mantinha sempre o cenho franzido, como portadora de um cansaço antigo. Teria sido a viagem, seria esta necessidade de ensinar coisas a quem de alguma forma lhe condicionava o pão. Não desarmava aquele franzir à direita, como um uniforme, a voz, os seios. O decote mais de um palmo, não que a medida tivesse sido feita. Como se um fenómeno tectónico, um descer de terras, propício a causar numerosas vítimas de um terceiro mundo qualquer.
E eu para ali, sem ninguém com quem apenas tomar um café.
No fim veio uma miúda do hotel mostrar as salas, acertar o número provável de pessoas, um jantar, dois almoços. Era feia, mas simpática. Pagou-nos o estacionamento no fim.

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