quarta-feira, fevereiro 08, 2006

O difícil equilíbrio...

No verão passado uma das minhas leituras foi “La Historia de los Arabes”, escrita por um libanês, Albert Hourani. Foi um acto de coragem, na exacta medida em que se tratava de um volume de largas centenas de páginas e com letra pequena, e onde, num grande esforço por ser objectivo e denotativo o historiador era às vezes um pouco asséptico. Estando porém bem atento, o leitor conseguia perceber as entrelinhas da coluna dorsal desta história. Os seus fulgores e os seus azares, e também a razão da sua actual deriva.
E a coluna dorsal era constituida pelas sucessivas cidades onde o califado repousava: Damasco, Bagdad, O Cairo, Istambul. Até que o Califado acabou. O Império Otomano perdeu a 1ª Grande Guerra. Aliás o Iraque pertencia-lhe...
E o fio de prumo da mesma história? A religião islâmica.
E a história começava com Maomé, com um prólogo breve a falar de uma pre-história das tribos árabes, que praticamente só disso se tratava. Maomé não fundou só uma religião. Mais do que isso, fundou uma civilização completa. Como civilização espelho temos a judaica, talvez, correndo riscos nas definições e hierarquias. A europeia não.
Hoje vivemos na ânsia de definir a Europa, esta península asiática em que estamos. A definição não é geográfica. Nasceu a Europa de hoje, repito – a Europa de hoje, da Expansão e da Razão. A Expansão seiscentista, a Razão das “luzes” de setecentos. E coincidiu com as “luzes” a relativização da religião cristã, até aí norte e iluminação do saber e da verdade. A ciência que progredia a passos velozes, a ramificação dos credos cristãos criando nuances na verdade que se queria absoluta, e intrumentos tão poderosos como os cérebros de Voltaire, Montesquieu, etc., tudo isto colocou o nervo cristão na defensiva e em perda, até hoje. E assim nasceu portanto a Europa, esta a que pertencemos sem necessidade de precisar dados geográficos, sem necessidade de especificar nem credo nem altar. Este momento fundamental de laicização de toda uma civilização, sedimentado violentamente através das guerras napoleónicas e demais convulsões do oitocentos, sentiu-se com força desigual pelo continente (por ex. nas áreas ortodoxas, eslavas, algo menos... mas Estaline fez o resto!).
No mundo Árabe isto, esta rotação de 180º, nunca aconteceu. E assim convivem lado a lado no mesmo ano do calendário dois mundos cuja evolução histórica das suas grelhas de descodificação do mundo, isto é, de como viver pessoalmente e em sociedade, como definir o bem e o mal, premiar um e julgar o outro, como interagir com o próximo, como constituir governo, como buscar a arte e a beleza, e a felicidade, como encarar a morte, enfim, têm vindo aparentemente a divergir cada vez mais, ou pelo menos a não convergir. E isto porque a Europa inventa, e o Mundo Árabe vai ainda beber à fonte corânica, que é toda a sua tradição (o Corão é praticamente o 1º livro árabe, tal o seu carácter fundacional), servindo-se dela para reagir contra a forma de estar “estrangeira”.

Esta pequena coisa que é a chamada “crise dos cartoons”, de interesse real pouco ou nulo, se exceptuarmos alguns mortos e feridos, vem porém levantar de uma forma aguda este busílis complicado: a civilização Europeia laica e a civilização Árabe religiosa parecem estar destinadas a conviver mal. E como lastro têm já a história colonial do Médio Oriente (muito mais importante do que as cruzadas...), onde discretamente nos pusémos por cima deles, e depois por fim ao sair deixámos por ali Israel...
Portanto, as caricaturas dinamarquesas são efectivamente uma ofensa grave para a grande maioria dos muçulmanos, para a grande maioria dos árabes. Maomé não é representável, muito menos assim...
Mas... e há sempre um mas... não por acaso recentemente um país muçulmano, a Turquia, começou formalmente a negociar a sua entrada na União Europeia. Na Turquia não houve qualquer embaixada queimada, nem qualquer vidro partido. A Turquia está nessa ponte geográfica mas mais ainda cultural, entre o Absoluto Islâmico e a atracção das “Luzes” (apimentada com os Euros...). Só assim se pode afirmar um país laico. Atartuk foi um filho tardio de Voltaire, uma espécie de Marquês de Pombal de princípio de século XX. O Iluminismo não era obrigatoriamente democrata. E assim, a religião Islâmica existe na Turquia relativizada, menos pública, menos omnipresente. No confronto entre a Europa das Relatividades e o Mundo Árabe dos Absolutos, só nos podemos permitir que ganhem os Monthy Phyton (o que estes não fariam com a figura de Maomé!)! E só podem ser estas as regras do jogo. Não é isto ser anti-religioso, mas sim a-religioso.
Donde que os muçulmanos dinamarqueses, ou outros quaisquer, podem e só pôr uma acção em tribunal contra o jornal em questão. Um tribunal civil. Onde espero que ganhem o processo. Ou nem me interessa. E manifestar-se o mais possível – pacificamente. E boicotar o que quiserem – estupidamente e injustamente para os milhares de trabalhadores que vão sofrer por isso sem terem contribuido para a confusão. Mais nada. Na Europa hoje faz-se assim e chega. Cuidado com a noção de multiculturalidade que permite que imãs importados do Médio Oriente decidam que a mutilação genital e os dois passos atrás para a mulher devem ser a european islamic way of life. Chega-se ao paradoxo de em França, o pais laico por antonomásia, o poder civil dialogar com os muçulmanos exclusivamente através dos líderes religiosos! Por outro lado a câmara de Roterdão emitiu um código de boas maneiras que incluia falar Holandês em público (tipo "ser bom Holandês é...).
Que não se confundam estas considerações com qualquer ideia de superioridade civilizacional ou outra, tipo “ganhámos”, etc. Não. Somos ainda racistas, e presunçosos. Perdidos do céu inventámos no século XX duas Guerras Mundiais, e duas ideologias atrozes como novas religiões, o Nazismo e o Estalinismo. Currículo este difícil de igualar. Perdemos. Há muitos séculos perdemos o contacto com os nossos irmãos do outro lado do Mare Mostrum, o Mediterrâneo.
Mas no que diz respeito à liberdade de expressão agora não estamos mal, acho. Estamos apenas um pouco confusos, só isso. Um pouco sózinhos. E lembramo-nos de que em Portugal cartoons similares sobre Jesus Cristo há umas poucas de décadas teriam dado cadeia ao autor. E em Espanha também.

E sabemos que o jornal dinamarquês só queria... provocar grosseiramente os muçulmanos dinamarqueses, os quais, em vez de ir falar com o director do colégio decidiram ir contar ao irmão mais velho, por acaso um tipo cadastrado...

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