domingo, setembro 02, 2012

Numa cidade há praças e há largos.

Numa cidade há praças e há largos. As praças são o centro das atenções. Os largos são segredos bem guardados. Eu tenho um terraço, virado a norte e a oeste. É como um pequeno largo, aberto por dois lados. O seu valor intrínseco é nenhum. Estimo-o porque é meu (pago-o ao mês) e porque nele me reconheço. Eu sou este terraço, um espaço sobretudo em branco, vazio e onde pelas margens há vasos e vasos com coisas mortas, secas, ou crescidas por engano. Tudo isto eu rego quase todos os dias. Comparando, estambém eu ainda não parei de almoçar e jantar e tomar o pequeno-almoço no dia a seguir.
Vou descrever. E vou começar da esquerda para a direita, como vejo do sítio onde estou sentado, num beiral de costas para a parede do meu apartamento.

Ao longe, em dois vasos rectangulares que mereceriam outro nome se eu me lembrasse dele, eu e a minha filha semeámos umas florzitas. Cresceram, floriram, morreram. Nunca apresentaram cara que minimamente se parecesse com a fotografia do pacote. No mais da esquerda enterrei duas batatas pequenas, que, entusiasmadas, não paravam de grelar na minha cozinha. Para nada lhes servirá o esforço.

A plantação que se segue já lá não está. Era uma salsa quase arbustiva que um Maio quente encarregou-se de queimar. E, fazendo o canto, noutro vaso comprido já houve junquilhos, brancos, perfeitos, como já houve dias redondos, perfeitos. Floração que não se irá repetir, virá o próximo anos dizer de sua cega justiça, certo é que seráo precisos novos bolbos e novos estímulos para que a perfeição me volte a visitar.

Num vaso branco e oblongo domina um alecrim. Eu chamo-lhe o “alecrim assassino” pois nesse vaso ele acabou por não permitir a sobrevivência de manjericão nem de coentros, nem do cebolinho. Na minha cozinha mantenho uma hortelã-pimenta recém-comprada mas tenho medo de a submeter ao desafio: conseguirá ela sobreviver ao alecrim assassino?

Dois vasos redondos e baixos são de amores-perfeitos. Semeei-os eu. As suas flores, pequenas flores, nunca viram inteiras a luz do dia. Não consegui descobrir que bicho as comia mal elas apareciam - e tentei. Noutras línguas estas flores chamam-se “pensamentos”, logo posso afirmar que deste vaso nunca recebi qualquer ajuda racional. E bem que precisava.

E, a seguir, vindo mais para cá, a mais risível das plantações, a das couves-coração. A self-deprecating joke, i must confess. E nasceram e cresceram mas sempre, sempre com defeitos, com defeitos e bastantes. Também algum que outro parasita as comia. Mas, mais do que esse alimentar alheio quando quem mais tem fome sou eu, a questão era nunca as pequenas e tortas couves começarem a fechar para desenhar o desenho esperado, nem para imitação de um dar de mãos quanto mais de um punho fechado símile o musculado órgão de cujo nome o nome da couve vem.

Em dois vasos há três gladíolos, um já floriu, os outros duas promessas que não serão eternas porque sabemos hoje mais e melhor. Estão parados no espaço e no tempo, será preciso arrancá-los, dar-lhes um destino definitivo. Um vaso grande no meio destes já teve um jasmim que não resistiu ao inverno. Hoje duas flores amarelas silvestres esperam resignadas a remodelação urbanística deste terreno.

Da casa – e quintal – de meus pais vieram: uma hera que, pequena, tem sido sujeita à pontaria excrementícia de pombas e gaivotas, aguentando estoicamente esta prova; um loureiro; um pé de glicínias; um azevinho. Quatro plantas que serão, quando forem grandes e eu muito velho, o orgulho deste terraço. Muito velho talvez para me lembrar de quando as trouxe, das ilusões transportadas com elas, do carinho que se perdeu porque sem retorno.

No canto direito já aqui perto de mim jaz seco um pinheiro de Natal e que assim leva ano e meio. Nele uma planta silvestre de folhas avermelhadas e pequeninas flores azuladas sobrevive da pouca água que eu ainda lhe dedico. Mais que sobrevive; medra e cresce, em pouco estará mais alta que o próprio pinheiro. Como eu sei que os filhos em nada se parecem aos pais insisto que esta planta nasceu do pinheiro de Natal, e mais não digo.

E, chegados aqui ao meu lado direito, há uma mesa e nela três vasos. O mais distante é um bonsai com meses apenas neste largo. Encontro-lhe já a utilidade de dar sustento a umas quantas teias de aranha que criam vários pisos de armadilha, pois que desenhadas em horizontal. Redes onde em rios de vento peixes-insectos vêm prender (e perder) o exosqueleto. E não vivemos todos de lançar a teia ao próximo, sempre outro, sempre insecto, retirando-lhe progressivamente a armadura, o exosqueleto, até finalmente nos servir de alimento?

A meio reside um vaso que me foi oferecido de amores-perfeitos cuja capacidade de produzir perfeitas flores mostrou-se uma e outra e outra e outra vez. Mas agora acabou, esgotado, e atem-se ao seu silencioso verde, braços abertos pelo esforço, as cabeças perdidas das flores que já não são.

Mais junto a mim, ao alcance da minha cansada mão direita, a não dominante e portanto a mais secreta, reside um bonsai morto há anos. Mantenho-o como se uma escultura fosse, pois agrada-me o desenho cinzento do seu cadáver. Na terra que o sustinha (e sustém) um pequeno e heterogéneo manto de verde, musgo, ervinhas, um pequeníssimo arbusto, enquadra a mais recente das minhas alegrias, uma flor. O seu nascer foi sem razão nem projecto e, se calhar, assim serão as melhores coisas.