domingo, julho 30, 2006

António Franco Alexandre, um poeta de Viseu!



Talvez por exaustão das capelas poéticas e cansaço em tomar partido por um contra um outro, António Franco Alexandre (AFA), nascido em 1944 em Viseu e homem da geração de 70 e do não-colectivo que “publicou” um Cartucho (de poemas – literalmente o era) em 1976, é por muitos considerado o poeta português vivo mais importante, entre os que ainda publicam (fica assim feita a ressalva para Herberto Helder).
A sua poesia levou nos últimos anos um giro progressivamente mais classicizante, tornando-a mais acessível, mas julgo que não menos interessante. A crítica tem-se dividido sobre, e quem ler “Os Objectos Principais” de 1979, ou “Sem Palavras Nem Cisas” de 1974, percebe o porquê.
AFA tem dois doutoramentos, em Matemática e Filosofia. Talvez por isso saiba passear pelas palavras ora com a mais íntimo respeito, ora praticando a mais profunda subversão, dentro da mais insubordinada das ordens. Todas as palavras lhe servem: as mais quotidianas, as mais divinas, as mais banais, as mais prementes. Um certo desprendimento formal de quem sabe que a poesia sem auto-ironia corre certos e determinados risco não esconde a força do dizer e os seus objectivos maiores. Com todas estas palavras onde digo nada, digo que é para ler.
Exemplos:

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poderemos, um dia, amar estas vitrinas
como quem ama uma ideia imperdoável, ou uma
breve hesitação dos condutores
a meio do percurso? quero dizer,
estaremos vivos para o desbotar destas
folhas de plástico que brilham
uma vez cada noite; e para
o assobio das nuvens
ao passar sobre a roupa?
ou, fechando a gaveta, engoliremos o receio
destes bolos roubados
na prateleira de água?
ou será este o dilema que nos propõem
as minuciosas escavações telefónicas?
são questões ignorantes, delas depende o rumo
dos grandes navios japoneses à entrada da doca.

in Os Objectos Principais, 1979

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em folhas de acetato me proteges

em folhas de acetato me proteges
floresço em avenida litoral
breve serei semente um céu e a terra
plantado azul e sopro de marés

as palavras fechadas com o jeito
que a boca tem ao ver-se
retratada
quase um sabor razão acidulada

me persegues de nomes, me retratas
igual ao branco hotel onde regressa
a não lembrada sombra do verão

e pousam de ouro em água o só
engano breve
das rosas e da neve despertadas.

in A Pequena Face, 1983

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Syrinx, Ficção Pastoral (I)

Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.

in Quatro Caprichos, 1999

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3. Eco (fragmentos)

Ci est d’amer volonté pure
Roman de la Rose

Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar-se no mundo.
[...]

in Fábula, 2001

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Aracne

Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.


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O que me faz diferente
(além, está bem de ver, do exoesqueleto)
é talvez não ter alma interior;
uma coisa qualquer sobrevivente
que me faça durar, ainda que seja
na forma inferior do ectoplasma
ou no fátuo rumor da borboleta.
É breve a vida; mal sabemos
fiar um fio, e conceber a seda,
já se gastou a areia na ampulheta;
a frágil obra que fizemos, fica
aberta ao vento, à chuva, ao descuidado
ofício da coruja e da serpente.
E como é escura a noite, só rasgada
pelo grito tenaz dos predadores;
ou, quando iluminada, é pelo fogo
que devasta os casulos e envenena
o jovem mel guardado nas colmeias.
À falta de melhor, antes prefiro
que ande lá fora, a pouca e perecível
alma que tenho; e se misture
tão bem a cada instante, que apeteça
vivê-lo eternamente; porque o tempo
é, como eu, um mero fabricante
de véus e teias que os humanos rasgam
sem sentir como nelas estão presos.

in Aracne, 2004

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1 Comments:

Blogger João said...

mUITO BEM. gOPSTARIA QUE PARTICIPASSE NA ANTOLOGIA QUE ESTOU A ORGANIZAR, joaosevivas@mail.telepac.pt

10:12 da manhã  

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