quinta-feira, janeiro 22, 2009

Subitamente

A civilização e o desenvolvimento tem destas coisas. Uma amiga minha contou-me que um seu irmão, “estrangeirado” e padecendo de uma qualquer doença cardíaca foi proibido pelo genro, nativo lá da terra estranha e culta, de ir buscar as netas ao jardim de infância, por medo de ao avô poder dar “alguma coisa”, coisa qual seria muito mau exemplo para as miúdas, nativas de dois e quatro anos de idade. Indo pela pior hipótese, a morte súbita, curiosa expressão, acompanha em risco variada patologia, incluindo alguma cardiovascular, disseram-me. Desconheço se “lá fora” conhecem a famosa canção dos Xutos sobre a “morte lenta”, outra curiosa expressão. Da vida para a morte desenha-se afinal uma linha contínua, uns dizem que se desce outros que é a subir, uma variável contínua porque variável pode ser a forma de morrer, e vem a ciência e depois define: “aqui ainda estava vivo”, “agora já não, está morto”. Sabemos que não é bem assim.
Esta odiosa proibição lembrou-me um episódio que ocorreu na minha mais tenra infância, teria eu uns quatro, cinco anos, mais não. Morava na Ribas, bairro que na prática são duas ruas de Ovar na direcção para a Ribeira, e fôra acompanhar o meu pai a buscar vinho – o garrafão de cinco litros da praxe, estamos a falar de 68,69 – ao armazém de vinhos que então ali ficava no gaveto donde partia a rua para o Hospital, fim da João de Deus, início da Alexandre Sá Pinto. Pouco abaixo era a Cooperativa do F.Ramada, inveja de quem não podia entrar, pouco acima os dois armazéns de sal, tugúrios onde eu às vezes ia comprar sal a granel, ao peso. Esclareço que os cinco litros davam para bastante tempo.
Enquanto se enchia o garrafão a conversa dos homens, e eram três, girava em torno da alta recente de um deles do Hospital de Ovar, nem eu percebia que doença tinha sido, nem o homem em questão me parecia doente. Não sei porque tenho a impressão que estava ali mas a comer alguma coisa, um bolo de bacalhau, não me lembro bem, como se a recuperar da fome que o internamento provavelmente lhe tinha originado. De repente o homem parou de falar e revirou os olhos. Escorregou até ao chão e ali ficou deitado, a boca aberta, alguma comida ainda sem entrar. Lembro-me distintamente e a cores da cara do homem, congestionada primeiro, depois branca como papel e finalmente cada vez mais arroxeada até atingir um roxo escuro. Os presentes, o meu pai e o armazenista, deram algumas sapatadas ao homem, talvez uns bofetões. Os primeiros-socorros eram um saber por saber naqueles tempos. Nada: o homem morrera ainda antes de ter tempo para se engasgar. Telefonou-se para os bombeiros, que ficavam a duzentos metros. E ficámos à espera, dois adultos, uma criança e um morto. Lembro-me do silêncio. Os bombeiros vieram, pegaram no corpo e levaram-no para o Hospital, que ficava trezentos metros à direita, a verificar o óbito. Não me esqueci deste episódio, pertence à dúzia de flashes que possuo da minha primeira infância. Não me sinto traumatizado, nem no sentido ortopédico nem em nenhum outro pelo acontecido, desde então sei que a morte existe e é como uma invisível corrente que nunca sabemos a que perna se vai agarrar e é só isto. É ter cuidado e ver onde pisar, avisando o próximo se de um amigo se trata.
Lembro-me também de um dia, ao atravessar a correr a Praça um velhote ter-me agarrado pelo braço e perguntado: “Tens medo de morrer?” ao que eu respondi: “Tenho!”. O velhote riu-se a bom rir, “e porque tens medo”, “e olha ele tem medo” e já então, do alto dos meus seriam oito, nove anos, me pareceu um absurdo não ter medo de morrer.
Tudo isto não levanta o ser odiosa a proibição acima.

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