quinta-feira, junho 19, 2008

44 anos

Tem 44 anos, é grande, pesada. Pêlos a mais por quase todo o corpo, a face masculina. Começou a ouvir vozes pouco depois do começar da idade adulta. Tendo sido esta algo difícil de acontecer, outras duas irmãs também com internamentos psiquiátricos, agitações, violência. Os primeiros homens foram simpáticos com ela, quase que houve como que um agradecimento mútuo, tão difícil é às vezes este comércio da carne quando não remunerado, tão cheio de confusões, espetar de bandeiras. Ou de bandarilhas, assim se sentiu quando ficou grávida do filho, depois com o tempo uma alegria estranha, acabou por casar mas as coisas nunca correram bem, ele o pai da criança nunca aceitou aquela imposição de casa e filho e jantarinho, não lhe batia porque era dez centímetros mais baixo e pesaria menos dez-quinze quilos, bebia muito mas a coragem não acontecia, um dia disse “vou-me embora mas antes...” pegou numa faca, ela apanhou-lhe o pulso e mandou-o para o hospital com fractura do rádio, a partir daí o tribunal de menores quis tirar-lhe o filho, embora nos relatórios sempre aparecesse “filho não tem ar de descuidado, vai ao infantário, desenvolvimento normal para a idade, sem hx de violência, parece haver bom relacionamento com a mãe”. O médico nas urgências perguntou-lhe como tinha conseguido fracturar só o rádio, ela explicou, o pulso avançou, ela parou-o e depois foi só apertar e amassá-lo contra a parede da cozinha, apanhou um carregador de telemóvel no caminho, daí o esfacelo e a fractura localizada.
Até para as limpezas as mulheres não se querem tão feias daí a inconstância dos empregos, de vez em quando as vozes vinham depois iam embora, acabou por ganhar-lhes algum carinho, avisavam-na sobre maldades e na verdade à volta dela quem lhe queria bem, quem, a não ser o filho de seis anos, dizia o relatório que ficara mais estranha desde Janeiro e entre parêntesis punha: “(desde a separação do marido, que pediu o divórcio)”. Que estranho, não se percebe bem estas coisas, agora o marido diz que o (seu) filho estaria melhor com a nora, a irmã, verdade se diga que esta não está internada no Magalhães de Lemos há 3 anos, medida possível de estar melhor do que, mais capacitada, ela sim está internada neste preciso momento, ninguém lhe traz tabaco, não a deixam ver o filho, de certeza a irmã quer-lho tirar, ela não tem nenhum, é o que as vozes lhe dizem e elas raramente se enganam tem sim estado mais triste porque as vozes já não falam tão alto, os medicamentos funcionam como uma borracha de apagar e ela começa a sentir-se perdida, e vem um médico observá-la porque tem tosse e anda cansada e no fim diz “E deve deixar de fumar!” ao que ela responde que sim, porque não, “o meu filho diz-me também a mesma coisa...”.

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