segunda-feira, junho 04, 2007

Açores - S.Miguel




A isto se resume a problemática das ilhas: estar num aeroporto horas e horas à espera que os elementos decidam quando e se em realidade se pode de determinada ilha sair, escapar, ou voltar a outra ilha ainda mais pequena, inferior portanto, sem direito a cidade, sem direito a uma ilusão de espaço, de alternativa.

E os paradoxos não cessam: existe um determinado Portugal que se relê nas telenovelas que se sucedem na televisão mais portuguesa. Este Portugal, desde já aviso, é aquele que decide eleições. Pois uma telenovela existe que se desenrola em espaço açoriano, melhor contado numa das duas plantações de chá da ilha do arcanjo, ilha de S.Miguel. É esta plantação não só isso mas também uma fábrica de um chá que no continente ninguém consome. A telenovela foi experimentar o espaço, gostou, ficou, usufrui de algo único na Europa a preço zero – repito, a preço zero. A telenovela é bastante conhecida, consumida digo. Não podem as ilhas vingar-se de outra forma senão embargar algum que outro voo da SATA, intervalando o anticiclone. Momentaneamente impotentes, os actores dão autógrafos na sala de espera do aeroporto, e por este gesto também não cobram. Falei da Gorreana, e da TVI.

O Divino Espírito Santo é a festa de todos os Açorianos. O Senhor Santo Cristo dos Milagres é a festa de S.Miguel e da Ponta Delgada, uma procissão imensa, sumptuosa, andaluza, onde marcam espaço no desfile os dignitários da autonomia. Em ambos os fenómenos a população emigrante açoriana tem muito peso.
Os Impérios do Divino Espírito Santo têm uma função de reger vaidades e encenar solidariedade. Não me posso permitir em dias de passeio e distância aferir da quantidade e volumetria destes dois itens. A vaidade está no desfile, no levar e exibir da oferenda. Na roupa escolhida, na seriedade dos cenhos. Depois vem a distribuição da comida. Em mesas corridas onde vem comer todo o povoado. E quem mais vier por bem. Dá-se cozinhado o que foi oferecido cru, vivo ou morto. E claro que nenhuma refeição resolve a penúria de um ano embora, percorridos os Impérios com cuidado e atenção, seja possível jantar de borla todos os dias durante umas semanas, segundo me constou. Eu assim fiz, embora só um dia, embora apenas uma vez num fim de tarde, tendo direito a pão, vinho de cheiro ou laranjada Melo Abreu, e uma rica sopa de carne com aroma a especiarias e ervas.
Por outro lado, o Senhor Santo Cristo é a necessidade de uma ilha e de a sua cidade se crerem grandes, nem que seja por um dia, nem que seja criando um Cristo só seu.

O Dia Mundial da Criança tem méritos e defeitos. Não vou por aí. E na Ponta Delgada lá estiveram os insufláveis, várias formas e feitios. E as crianças. Umas de mãos dadas, bem comportadas, outras em destempero, vorazes, insaciáveis. Dois mundos quase em choque. A Ponta Delgada "continental" e a "insular". Defina-se a posteriori o nome para uns e outros. Vamos então às coisas diferentes, que as houve.
Primeiro tivemos os espaços de sensibilização da juventude para a coisa armada, e para a segurança. Junto a uma carrinha Volkswagen um polícia sinaleiro de cartão "sinalizava" o espaço PSP. Duas jovens representavam a corporação, interagindo com a criançada, e completamente alheias ao caos automobilístico que se desenrolava logo ali em frente. Estariam na "força" por engano? Educadoras infantis falhadas? Logo ao lado uma pequena banda do exército dava o som – vagamente ragtime – a uma tenda onde um PE controlava ou era controlado por duas recrutas com óculos escuros à aviador. As crianças, avisadamente não paravam ali muito.
Mas havia uma canção que se sobrepunha a tudo e a todos, e era um corrupio de cantigas que um alegre rapaz com visível à-vontade, e deficiência física – usava duas muletas, cantava em voz potente e bem colocada. Ele era o "compére" de toda a festa. E era o Quim Barreiros, era o José Cid, era o Carlos Paião. O repertório todo, bem estudado. Modinhas populares de entremeio. Apresentava-se e apresentava a canção, e depois dizia ao homem do sintetizador: "é a três", ou "é a vinte e um, não, a vinte!" E entrava a orquestra, mais os coros. Um repertório vasto. Falou-se de anos de experiência na rádio e na televisão. E apresentou-se um famosíssimo (?) dançarino micaelense, que de repente, saído do nada, despiu o casaco e começou a desenhar um malhão lesto e alegre, sózinho. Nem mais, sozinho. Quando acabou, foi aplaudido, voltou a vestir o casaco, e desapareceu confundindo-se com a multidão, por entre passou-bens. Achei primeiro que isto era o auge da insularidade buscada. Depois não, lembrei-me do Sérgio & Madi, notei que ninguém ali dançara a chamarita, e percebi o favor feito, a viagem no tempo a um Portugal antigo, acrescido apenas daquela singularidade que uma ilha pode dar como esse dançarino micaelense do malhão, Luis Arruda de seu nome, famoso porque uma ilha é pouco mais do que um bairro, já agora Luís, um abraço.
Depois o nosso amigo da voz potente decidiu fazer um intervalo e entraram as crianças acrobatas que dançaram irradiando simpatia o techno/bacalao do costume, e umas adolescentes mal encaradas que dançaram hip hop. Ambos os escalões etários tiveram muitos aplausos, da parte de pais e irmãos. Suponho que foi isso.






O atraso do avião foi aproveitado para ir jantar ao Gilberto, na Relva, ao lado do aeroporto, como quem diz. Uma tasca à maneira, com um dono portista com se pede. Coitado, já lhe restava pouca comida, serviu-nos apenas com duas doses de feijoada, duas de chicharros e três de filetes de abrótea, foi tudo um sacrifício... grande Gilberto! Não há, apesar de tudo, como um avião atrasar-se, resumindo. Então, qual é o problema com as ilhas?

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