sexta-feira, junho 02, 2006

Manuel António Pina


Um amigo meu, que é médico, internou recentemente uma doente para estudo, com o feliz resultado de descobrir que ela tem um cancro estenosante do estômago, na zona do piloro, e tem que ser operada.
A doente, uma gentil e idosa criatura já com a “sua idade”, no princípio recusara determinados exames, os mesmos que agora fizeram o diagnóstico. Tem a senhora uma hipovisão importante, os seus campos visuais inferiores são inexistentes, e nas metades superiores vê apenas figuras esborratadas. É este um paralelismo curioso com o seu ex-marido, este sim cego e pronto, este sim doente antigo deste meu amigo.
Este senhor, um doente respiratório nos seus oitentas, e que por vários acidentes isquémicos transitórios veio parar às mãos do meu amigo há uns 4-5 anos, nunca lhe permitiu grande tratamento das suas maleitas – à mínima veleidade de antiagregação, aspirina, outros, logo o pobre invisual começava a perder sangue na urina, não que ele a visse...
Este doente compensava todo este insucesso de intenção terapêutica permitindo ao meu amigo consultas preenchidas com uma conversa simpática e riquíssima. Quando novo, o seu doente conhecera entre outros por exemplo Bernardino Machado, ex-Presidente da 1ª Republica, 1ª Republica esta aliás tão vilipendiada e que teve 1ªs figuras da altura do citado, ou como Manuel Teixeira-Gomes... Lembrava-se o meu amigo de numa consulta inclusivé discutir a famosíssima questão da mulher do Carmona...
Estabelecida a boa relação com a família apesar do nihilismo farmacológico, o passo seguinte foi pedir para observar a ex-esposa, que preocupava os filhos, e que em meses desembocou no actual internamento .
O meu amigo conhecia duas filhas, diferentes como a água do azeite, e ouvira falar de um filho deslocado na Dinamarca, tradutor de livros de autores... dinamarqueses. Uma tradução tinha-lhe sido inclusivamente oferecida, por um Natal.
Hoje este filho lá estava, no hospital português, perante a mãe desesperada, a não poder comer, esperando a morte prometida visto a informação não ter sido negada, “é cancro”. Sim, porque as portuguesas marcações de bloco operatório não se compadecem com a excelência pessoal de pessoas assim. O inferno existe e é uma frase do tipo “agora só para a semana”. Apresentações, diagnósticos, estratégias, não façam assim, vamos esperar. O hospital como um ecossistema para o qual os doentes nunca estão preparados. Cada doente uma espécie única em vias de extinção.
Depois o meu amigo médico foi meter algum veneno ao centro comercial clandestino que existe nas trazeiras do hospital. Comeu, acabou de comer, e por ali ficou, cabeceando, em transe, à espera de um tiro, à espera de uma solução.
E eis que lhe aparece o filho tradutor da sua doente. Vinha em pequenos passos, roupa de verão e óculos de massa, melancólico, cinquenta e poucos. Trazia na mão um bocado de verde de um arbusto colhido... – como raio... “Não pude evitar apanhá-lo...” A primeira frase. O meu amigo levantou-se e sentou-se e levantou-se. Depois desta explicação voltaram à circunstância que sempre rodeia... “a minha mãe está plenamente ciente, a minha mãe terá depois que fazer a rotação quando já não a quiserem operar, ela tem muita confiança em si mas eu acredito que todos os médicos...” A voz lembrava bastante a do pai, o tal doente invisual, por onde esta história tinha começado. Mas uma voz mais pausada, como se sabendo guardar as histórias para outros cenários e tempos mais favoráveis, ou apenas porque as histórias que conhecia eram apenas traduções por defeito de verdades indizíveis... e o pequeno evento arbustivo na mão esquerda, assim um pouco para trás, como um cigarro que se esconde. “Sabe, lembra-me um amigo meu, o Manuel António Pina, não sei se ouviu falar nele”.
Deus não existe, mas se existisse seria um Deus irónico.

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