domingo, abril 02, 2006

1de Abril - 1996

"Mário Viegas na memória da mãe.
No próximo domingo, dia 1 de Abril, completam-se cinco anos sobre a morte do ilustre escalabitano Mário Viegas, considerado por muitos o melhor actor da sua geração. A sua mãe abriu-nos as portas da sua casa em Santarém para uma visita guiada à memória do filho ilustre. "1 de Abril de 1996. Mário Viegas morreu. Era um cómico que levava dentro de si uma tragédia. Não me refiro à implacável doença que o matou, mas a um sentimento dramático da existência que só os distraídos e superficiais não eram capazes de perceber, embora ele o deixasse subir à tona da expressão às vezes angustiada do olhar e ao ricto sempre sardónico e amargo da boca. Fazia rir, mas não ria. Pouca gente em Portugal tem valido tanto."José Saramago(in Cadernos de Lanzarote)
Nas suas primeiras férias de Natal, após ter ingressado no Colégio Internato Pio XII, em Lisboa, e ter passado o primeiro semestre longe de casa, Mário Viegas anunciou aos pais: "Matriculei-me no Conservatório". Em meados dos anos 60, num país em plena guerra colonial e governado por uma ditadura já bolorenta, uma declaração destas poderia parecer bombástica. Não foi o caso. António Mário Lopes Pereira Viegas, que na altura era ainda o António, filho varão de uma linhagem de farmacêuticos do lado paterno, não ouviu nenhuma reprimenda. O pai disse-lhe que esta era uma decisão dele. A mãe exclamou: "Eu ficaria admirada se não tivesses tomado esta decisão".O teatro era o caminho mais que natural para quem, no seu diário, aos treze anos de idade, escrevia que o seu sonho era ser actor. Naquela noite de Natal, António ainda ouviu da mãe: "Que faças o melhor". As palavras revelaram-se quase proféticas. Raul Solnado - o único que poderia ocupar, na história do teatro português contemporâneo, o lugar do filho de Francisco e Mariana Viegas - sempre disse: "Ele é o melhor actor da nossa geração".Espírita por convicção, apesar da educação católica, Mário Viegas sempre acreditou nos desígnios da sua família. No seu livro auto-photo-biográfico, com apenas duzentos exemplares editados, conta a história da sua família, tanto do lado do pai como da mãe. Mário Viegas, que morreu há cinco anos, dizia ser a encarnação do seu trisavô paterno, o famoso actor Francisco Leoni, fundador do Teatro da Trindade.Do lado da mãe, a história é mais comprida. O seu tio, António Cardoso Lopes Júnior, foi o fundador da famosa revista de banda desenhada "O Mosquito", pioneira em Portugal. A sua mãe, Mariana, aos dezoito anos, foi convidada pelo irmão para dirigir o suplemento feminino da revista, denominado "A Formiga". Assinava como Tia Nita e chegava a dar aconselhamento às muitas cartas de raparigas que chegavam à redacção. Pela sua tenra idade, nunca se deu a conhecer.Com esta tradição de família e um ambiente propício, era natural que Mário Viegas já brincasse aos quatro anos de idade com os fantoches que a mãe lhe dera. Não era criança para brincar de carrinhos e passava os dias a ler, fechado no quarto e a ensaiar as vozes das personagens que imaginava. Inventou o Teatro ABC, criava as personagens e desenhava os cartazes das peças de escrevia, espalhando-os pela casa. Já aos dez anos de idade, não havia festa ou sarau em Santarém que não fosse convidado para apresentar o seu teatro, sempre auxiliado pela sua irmã mais velha, Hélia Viegas.Nos seus 47 anos de vida, Mário Viegas fundou várias companhias de teatro - entre elas a "sua" Companhia do Chiado -, contracenou com Maria do Céu Guerra, fez inúmeras sessões públicas com Zeca Afonso e outros cantores de resistência, trabalhou com Carlos Avilez e encenou peças de vários autores, com especial ênfase para a obra de Samuel Beckett. No cinema, encarnou "Kilas, o Mau da Fita" (um dos filmes portugueses mais vistos de sempre), trabalhou com Manoel de Oliveira e contracenou com Marcelo Mastroianni e Victoria Abril. Na televisão, atingiu grande popularidade com o programa "Palavras Ditas, entre 1978 e 1982. Ao longo da sua vida, gravou catorze discos de poesia, onde declamou mais de 200 versos de Almada Negreiros, Alexandre O'Neill, Pablo Neruda, Ruy Belo, entre muitos outros.Nos seus últimos anos de vida, Mário Viegas não parou de surpreender. Autor de seus próprios textos, concebeu "Europa, Não! Portugal Nunca!!", um espectáculo em forma de conferência de imprensa onde personifica um pseudocandidato à Presidência da República. Levou tão a sério a sua preocupação com o estado geral do País, que participou nas eleições legislativas de 1995 como candidato independente pela UDP. Um ano antes, era galardoado por Mário Soares, então Presidente da República, com a Ordem do Infante D. Henrique.Dois meses antes da sua morte, a 1 de Abril de 1996, Mário Viegas entregou o seu espólio pessoal a sua sobrinha, com quem viveu os seus três últimos anos de vida. Ana Viegas é a filha que o actor não teve, nas palavras de sua mãe. Pressentindo o fim da sua vida, ensinou à sobrinha o que fazer com o material que acumulou, deixando instruções por escrito. Nos quadros que tanto gostava, escreveu por detrás: "Este quadro custou tanto, se um dia venderem, não se deixem morder", conta a mãe Mariana. Mesmo vivendo em Lisboa, Mário Viegas vinha sempre aos fins-de-semana à casa de família, pois "tinha saudades do seu quarto de garoto". Este quarto, onde ainda estão as suas almofadas, os seus quadros, os seus livros, é hoje o lugar em que a sua mãe gosta de sentar para escrever, à mesma secretária onde o filho criou as suas peças na infância. Foi neste lugar que escreveu a "última carta ao filho", que será o prefácio do catálogo da exposição que o Museu Nacional do Teatro está a preparar sobre a vida do filho famoso."
Alexandre Cavalcante In http://www.oribatejo.pt/capa2903.htm


Ontem passaram dez anos sobre a morte de Mário Viegas. Já não há pessoas assim, bonitas, revolucionárias, apaixonadamente trágicas. Talvez só nos fique o Zé Mário por morrer.
Vi o Mário Viegas em cena em 1995, portanto um ano antes da sua morte, sózinho à boca de cena a representar e a contar as suas histórias no Teatro do Chiado. Antes, à boleia em carro estranho ouvi pela primeira vez (sou sempre o último a saber, igual as gravidezes...) o seu diagnóstico, Mário Viegas tinha SIDA. E estava magro, em palco, mas igual a ele próprio, que aliás se apresentava como provável candidato a Presidente da República... Não percebo às vezes porque existimos, porque a Criação, a Mãe-Natureza se deu a este trabalho todo. E aí penso no Mário Viegas, ou brinco um pouco com a minha filha, penso nos fugazes amigos que vou criando ao longo dos anos, por entre os milhares de diários clínicos ilegíveis.
E acalmo.

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