Tolentino
Sempre me intrigaram os crentes em Deus, ou atrapalharam, não sei, como se algum mecanismo neles existisse cujo simples funcionamento fosse para mim um incontornável mistério. Imaginemos, é de manhã, uma neblina outonal preenche a rua em frente de minha casa. Saio, em frente o carro estacionado. Vislumbro à direita os croissants da Dallas a atravessar a rua. Mulheres que vêm trabalhar para casas de outras mulheres. Imaginemos ainda que, ao contrário do habitual, não levo pressa e decido ludibriar as obrigações e pensar nuns pequenos lábios que a juventude decidiu avermelhar, ou rever conversas, música da humanidade. E é tão cedo, e sorrio. Em mim, isto é um milagre, os meus dias não costumam ter este início, ser assim prefaciados. E é este um milagre que não precisa de Deus. E tudo isto para dizer que para mim a poesia de José Tolentino de Mendonça tem demorado.
É deste ano o livro "A Estrada Branca", na Assírio. E parece-me ser um muito bom livro de poesia. Ainda não o li todo. Mas numa alta percentagem, os poemas não só demonstram saber e atenção mas também despertam os sentidos e abrem mil passagens, e portanto os poros de quem lê. E um exemplo:
PLUMAS
Através da terra o amor
torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes
O amor vive na ponta dos cabelos
O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso
qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma
Os inocentes que se amam dizem
teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite
Os inocentes que se amam
por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio
Etiquetas: fala, livros, transcrições
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