terça-feira, setembro 27, 2005

Tolentino

Sempre me intrigaram os crentes em Deus, ou atrapalharam, não sei, como se algum mecanismo neles existisse cujo simples funcionamento fosse para mim um incontornável mistério. Imaginemos, é de manhã, uma neblina outonal preenche a rua em frente de minha casa. Saio, em frente o carro estacionado. Vislumbro à direita os croissants da Dallas a atravessar a rua. Mulheres que vêm trabalhar para casas de outras mulheres. Imaginemos ainda que, ao contrário do habitual, não levo pressa e decido ludibriar as obrigações e pensar nuns pequenos lábios que a juventude decidiu avermelhar, ou rever conversas, música da humanidade. E é tão cedo, e sorrio. Em mim, isto é um milagre, os meus dias não costumam ter este início, ser assim prefaciados. E é este um milagre que não precisa de Deus. E tudo isto para dizer que para mim a poesia de José Tolentino de Mendonça tem demorado.
É deste ano o livro "A Estrada Branca", na Assírio. E parece-me ser um muito bom livro de poesia. Ainda não o li todo. Mas numa alta percentagem, os poemas não só demonstram saber e atenção mas também despertam os sentidos e abrem mil passagens, e portanto os poros de quem lê. E um exemplo:

PLUMAS

Através da terra o amor
torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes

O amor vive na ponta dos cabelos

O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso
qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma

Os inocentes que se amam dizem
teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite

Os inocentes que se amam
por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio

Etiquetas: , ,