quarta-feira, maio 04, 2005

E então para onde vamos ?

Tocou a uma campainha. “Já vai”. Como se soubesse. “Entre, a casa é sua” Era uma brincadeira, não uma ironia. E sentaram-se.
Encontras alguém e logo uma palavra aparece como um selo, agarrado à testa dessa mesma pessoa, como um ficheiro anexo. E a palavra pode ser aborrecida, até conscientemente inexacta, pede-se à palavra para sair mas ali fica, a bailar. E aqui a palavra era “enleio”. Onde lera ele essa palavra, egrégia, antiquíssima, coisa de brumas e virgindades, mas a atrapalhação que sempre o possuia ao entrar naquela casa ele classificava-a assim. Julio Dinis, nem mais. Porque aquela mulher de sessenta anos conhecia-o em fatias finas, ao microscópio, toda a trama. E abria-lhe a porta sempre com um sorriso. Há coisas que se agradece.
Perdera o marido em acidente há uns anos, de três filhos nenhum lhe frequentava a casa com assiduidade. Livros e livros, e um cão. Dizia que um cão é mais simples. Olhos claros e cabelo apanhado, um cigarro meio fumado após cada almoço. Recém aposentada porque fôra professora, e cedo. Fazia cursos sobre cursos, os quais depois dizia detestar, pois discordava do que lá aprendia. “Menino o que toma ?” “Conselhos, dois a três” “Preparo um chá. Os conselhos vêm depois. Deixe-se estar sentado”
Chamava-lhe Liza, porque ela era Elisa Maria, e porque fora sua sogra durante seis meses. Falamos agora da filha mais nova, a qual depois fôra praticar advocacia para o Brasil, e por lá ficara. Mas voltemos. Tratava-a por tu, e ambos tinham prazer nisso. Ela fazia da proximidade uma gestão parcimoniosa. Estava-lhe agradecida, um casamento estapafúrdio tinha dado rumo (Brasil) a uma filha muito desarrumada. Andava por lá, consta, a defender os Sem-Terra.
Os gestos eram poucos, ele fazia girar os olhos sobre a casa, refazia as estantes, os objectos conhecidos. Aconchegava-se. E esperava pelo seu chá. Veio o cão resmungar. Chamava-se Santo Lenho, de seu nome completo. Mas ela reduzira a coisa a Santo, como a série da televisão. Para não ofender. E esclarecia não ter sido dela a ideia do apósito.
“Então ?” O mimo. “Não me queres ler a sina ?” Ela abriu os olhos. “Menino, não são horas. E não são anos ! Não se oferece uma mão que já esteve na família !”

Etiquetas: