quarta-feira, dezembro 05, 2012

À janela.


Às vezes a vida faz um círculo completo. O que não lhe garante um certificado de perfeição.
Passei anos à janela ou, pelo menos, contas feitas, mui largos meses. Morei dos cinco aos vinte e um anos numa grande casa no centro de uma pequena cidade no litoral interior. É difícil definir Ovar mas, se calhar, é isto, uma muito pequena cidade interior do litoral. E quem é de lá percebe. Uma casa que era enorme, um exagero de divisões com um enorme pé-alto e amplo espaço e pela qual pagávamos um aluguer que, em dezasseis anos, passou de caro a ridiculamente barato. Levou a ameaças físicas por parte do proprietário mas a instabilidade laboral do meu pai não admitiu contemplações… Arrumando em valores de hoje, pago por este apartamento onde escrevo cento e dez vezes mais.
Era uma casa alta e mais alta se via ao estar construída na encosta de uma das poucas colinas da mais plana das terras, logo abaixo do Museu e de uma casa apalaçada com um torreão acastelado, nada bonito por sinal. O rés-do-chão era uma só enorme garagem, um espaço adequado para um baile ou três automóveis, o que viesse primeiro. Este espaço serviu posteriormente para o primeiro trabalho remunerado de minha mãe, ao qual devo a profissão que hoje tenho. Havia uma tira de quintal nas traseiras onde durante uns dez anos se afogou em solidão um cãozito. O 1º andar, cujas costas eram um corredor que dava para fazer corridas cronometradas, tinha uma enorme sala comum e a cozinha. A varanda da sala era um espaço exterior virtual, com vasos vários a que só a minha mãe dava moderada importância. No piso de cima os quartos, três, e outra varanda inútil, sendo que um dos quartos partilhava funções devocionais e televisivas.
Expulso da rua por circunstâncias aqui demasiado desinteressantes para servirem de entretenimento, havia sim janelas, e amplas, dando para o largo do chafariz, o rossio da mui pequena e interior cidadezinha do litoral centro norte. Passava eu horas a essas janelas a ver a vida acontecer a miúdos e graúdos, para além do vidro. E a vida realmente parecia que ia acontecendo. Pelo contrário, cada excursão ao exterior era uma pequena aventura, o percurso atentamente estudado da janela de onde eu via tudo. Depois finalmente cresci e vim para esta minha actual cidade do Porto e nunca mais voltei para nenhuma janela de Ovar.
Encontro-me hoje à janela neste alugado apartamento, cento e dez vezes mais caro. Paredes meias com a VCI, a vida lá fora parece que acontece, um vidro duplo a separar.