À janela.
Às vezes a vida faz um círculo completo.
O que não lhe garante um certificado de perfeição.
Passei anos à janela ou, pelo menos,
contas feitas, mui largos meses. Morei dos cinco aos vinte e um anos numa
grande casa no centro de uma pequena cidade no litoral interior. É difícil
definir Ovar mas, se calhar, é isto, uma muito pequena cidade interior do
litoral. E quem é de lá percebe. Uma casa que era enorme, um exagero de
divisões com um enorme pé-alto e amplo espaço e pela qual pagávamos um aluguer
que, em dezasseis anos, passou de caro a ridiculamente barato. Levou a ameaças
físicas por parte do proprietário mas a instabilidade laboral do meu pai não
admitiu contemplações… Arrumando em valores de hoje, pago por este apartamento
onde escrevo cento e dez vezes mais.
Era uma casa alta e mais alta se via ao
estar construída na encosta de uma das poucas colinas da mais plana das terras,
logo abaixo do Museu e de uma casa apalaçada com um torreão acastelado, nada
bonito por sinal. O rés-do-chão era uma só enorme garagem, um espaço adequado
para um baile ou três automóveis, o que viesse primeiro. Este espaço serviu
posteriormente para o primeiro trabalho remunerado de minha mãe, ao qual devo a
profissão que hoje tenho. Havia uma tira de quintal nas traseiras onde durante
uns dez anos se afogou em solidão um cãozito. O 1º andar, cujas costas eram um
corredor que dava para fazer corridas cronometradas, tinha uma enorme sala
comum e a cozinha. A varanda da sala era um espaço exterior virtual, com vasos
vários a que só a minha mãe dava moderada importância. No piso de cima os
quartos, três, e outra varanda inútil, sendo que um dos quartos partilhava
funções devocionais e televisivas.
Expulso da rua por circunstâncias aqui
demasiado desinteressantes para servirem de entretenimento, havia sim janelas,
e amplas, dando para o largo do chafariz, o rossio da mui pequena e interior
cidadezinha do litoral centro norte. Passava eu horas a essas janelas a ver a
vida acontecer a miúdos e graúdos, para além do vidro. E a vida realmente parecia
que ia acontecendo. Pelo contrário, cada excursão ao exterior era uma pequena
aventura, o percurso atentamente estudado da janela de onde eu via tudo. Depois
finalmente cresci e vim para esta minha actual cidade do Porto e nunca mais
voltei para nenhuma janela de Ovar.
Encontro-me hoje à janela neste alugado
apartamento, cento e dez vezes mais caro. Paredes meias com a VCI, a vida lá
fora parece que acontece, um vidro duplo a separar.
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