domingo, outubro 17, 2010

A alma e o pâncreas, ou perto.

Muitas dúvidas há onde se localiza a alma. Pois eu digo que será no pâncreas. Será no pâncreas e eu explico: é o pâncreas aquele órgão que por mensagem proteica controla, faz e desfaz o nível de doçura que percorre e inunda o nosso corpo, ora digam se a alma não deve estar por ali. Ora sucede que eu também, na sequência, tenho uma especial simpatia pelos diabéticos tipo dois e explico: os diabéticos tipo dois, primeiro, chegaram depois que os tipo um, pois a carga genética é bem mais lenta, etc. e tal, de se fazer sentir, de alguma forma são gente que a serem "dois" é como se perdessem em toda a linha com os outros mas lentamente e com panache, eles e eu, já aqui acrescento, mas a ironia aqui não cede e logo continua. Esta raça de diabéticos não tem falta de pâncreas, pelo contrário, têm mais pâncreas do que os restantes mortais, o pâncreas, na minha teoria portanto a deles alma, é maior e produz mais proteína emissária do que nas demais pessoas. São porém gente onde a premência pelo doce, pelo alegre complemento, pelo amaciar perene da amargura da vida que o açúcar permite acaba por os levar a ser diabéticos. Eles querem muitíssimo, pedem o máximo, o pobre pâncreas hipertrofiado tenta mas não consegue desalfandegar adequadamente tanta quantidade e daí o desequilíbrio, o desmando, o despautério na doçura. Há um querer de uma alma imensa e multiplicadamente doce, e em doçura se afogam estes homens, estas mulheres, coisa que eu compreendo e aceito, no geral os diabéticos tipo dois são gente bem disposta, alegre até, mesmo amputados, cegos, enfartados, a fazer diálise.

Outra coisa um cancro do pâncreas. Este é a negação da alma de que falei. Por isso, talvez, ao atacar o centro regulador da doçura que nos faz atravessar o mais escuro dos dias, talvez mesmo por isso seja o mais doloroso dos tumores.

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Ela tinha morrido de um cancro no pâncreas, no hospital respectivo. Na manhã seguinte comunicaram-no ao marido, também idoso, debilitado, choroso há semanas, uma vida de união, conforme relatado. De manhã ele nada disse de especial, aliás discorreu algumas considerações sobre o enterro, as últimas vontades. Pela tarde queixou-se de algum cansaço. Ao fim da mesma ficou confuso e paralisado do lado esquerdo. Pode-se sempre considerar que este lado é o lado do coração e portanto foi compreensível isto ter acontecido. Mas a ciência ensina-nos que paralisa o lado oposto ao hemisfério cerebral que é afectado, pois era uma trombose. O hemisfério cerebral direito, mais nos é ensinado, pode ser considerado o "não dominante", pois, por exemplo, a sua lesão não compreende a fala e o entender, dúbia vitória, o senhor de que falamos portanto desconhecia e acintosamente ignorava que o dele lado esquerdo se tinha perdido algures na viagem até ao hospital. Mas talvez tal falta de noção não tenha sido definitiva, talvez os familiares, a filha, a neta, ambas de luto recente pela mulher de que falámos antes, sua esposa, lhe tenham conseguido explicar que algo não estava bem à esquerda, que o seu corpo tinha perdido completa e definitivamente o equilíbrio e a simetria e bem podia ele chamar pelo lado esquerdo que ele não voltaria a comparecer. O que realmente aconteceu é que no dia a seguir o homem ficou pior, pois assim o terá decidido - é esta a minha opinião - com todas as suas forças, das mesmas o resto. A subtil lesão do hemisfério que era não dominante sangrou, explodiu em sangue,  e passou a dominar poderosamente o quadro médico e a vida deste homem, que em horas faleceu.
Continuando nas localizações digestivas para a alma, este homem não teve "estômago" para continuar a viver e, na minha opinião, fez o que tinha a fazer.

Continuo na minha, a alma das gentes, se existe, localiza-se por ali algures entre o pâncreas e o estômago.