terça-feira, janeiro 19, 2010

Uma Luz Com Um Toldo Vermelho

"Levantar-se, ir à cozinha buscar pão. Início de um enredo onde
juntam outra voz à sua despedida. Chuva nos pitosporos, nas
gazânias, nos cardos. Nas vidraças fechadas pelo temporal.

Cinzento ultramarino do crepúsculo. Chegar do supermercado
com um saco branco. Retirar as cebolas, o leite, os cereais. Pegar
na faca, decascar uma pera, sorrir. Em breve ouvir a campainha
e a tua voz, primeiro pelo intercomunicador.

As camisolas acrílicas das pessoas de domingo. Os seus grossos
gritos sobre coisas banais. Como chamam cães, se transformam
em detritos. A caminhada bruta dos sapatos, os gestos pesados.
Escrever sobre o esterco das repressões.

Das aves que nas estacas dos arbustos recolhem a humidade da
manhã uma sobe ao peitoril. Gris e esverdeada uma canção junto
dos vidros. No calor do quarto a aparente liberdade do canto,
essa ave: descrever como regressa ao manto rasteiro dos zimbros
e depois alcança o mistério dos canaviais, perdida na indefinição
da luz.

A sombra da janela na parede. O sol de outono a descer no mar.
O arbuto, o funcho, a murta. Uma discreta música por onde se
pressente a quimera da vida. Adormecer.

Contar acerca do aiôco: sem concha, mas semelhante às lapas;
do tamanho das uvas tintas; escondido no vazio dos cachos; ao
apertá-lo ser ferido com uma picada mortal.



Joaquim Manuel Magalhães, in Uma Luz Com Um Toldo Vermelho, Presença, 1990.





(Há poemas que valem toda uma antologia!)