terça-feira, dezembro 08, 2009

Às Cinco da Tarde 2003



Existem filmes que nos fazem sentir culpados. E o filme “Às Cinco da Tarde“ é um deles. Mas esta culpa é mais extensa do que o habitual e mais estranha. Trata-se do 1º filme rodado no Afeganistão após a derrota dos talibãs. Derrota hoje sabemos não definitiva. Derrota tornada provisória pelo cansaço ocidental em defender gente longínqua após os anos de chumbo iraquianos. Uma rapariga filha de um homem conservador e reservado vai à escola às escondidas. Também faz outras coisas às escondidas, como calçar uns sapatos brancos de tacão e descobrir a cara onde não devia. Como “pensativamente e com muito cuidado” saltar à cabra-cega. O filme explica bem como são as coisas: o homem não deve ver a cara de nenhuma mulher e assim os cruzamentos que acontecem esporadicamente levam os personagens masculinos a virar a cara contra o muro e expiar publica e imediatamente os seus pecados.

Nogreh, a nossa rapariga, tem para além da sombra silenciosa do seu pai o “peso” da cunhada, descobrimos depois viúva do seu irmão e sem ter como alimentar o seu bebé. Afeganistão , terra assolada pela fome, a doença, refugiados a assolarem as casas dos refugiados que os precederam. E Nogreh diz numa aula que quer ser Presidente da República do Afeganistão. Como ali ao lado Benazir Bhutto. Conhece um rapaz refugiado que se diz poeta e a faz fotografar-se para uma futura campanha. O fotógrafo faz-lhe muitas fotografias, a melhor, ele diz, com burka pois assim é como deve ser. E a culpa entra por todos os lados neste filme. Porque não chega a água para esta gente? Porque não há comida, não há espaço, não há dignidade? Porque apesar de tudo achamos este filme belíssimo? Porque admiramos o esvoaçar azul das burkas no meio do deserto? Um cavalo à procura de água no terceiro piso de um palácio em ruínas? Porque acontece até cairmos no engodo do relacionamento entre o poeta e Nogreh, como se possível, com se até pudesse ser o fio-guia, a salvação dop filme, a flor no deserto que contrasta com a omnipresente ruína nacional? Nos últimos vinte, trinta minutos do filme Nogreh pode dizer-se que “desaparece”. Onde está Nogreh? A vida segue o seu caminho, Nogreh é ultrapassada. Talvez. O filme começa como acabou – reparem. Elas vêm, elas vão. A voz repete o poema de Garcia Lorca que dá nome ao filme, “A las cinco de la tarde”, metáfora fugidia sobre o deserto de Nogreh, de onde ela afinal nunca conseguiu sair, pois não é mais do que a filha dum pashtun desgostoso com Kabul, “cidade hoje cheia de blasfémia onde as raparigas já não usam véu” e portanto foge, possivelmente em direcção a Kandahar, imagino. Numa das cenas ele é expulso de "casa" com… música! Et pourtant, nesta aldeia global em que vivemos, Nogreh chega a falar com um soldado francês – e aprende que Chirac foi eleito porque ninguém gostava do outro candidato. E o pai de Nogreh, fantástica figura, discute com um passante Bin Laden e os americanos. Foi o poeta que ensinou a Nogreh o poema. Não há poett no fim do filme, ouvimos porém poesia. O filme tem um fim quase insuportável de tão triste: alguém morre e o filme acaba. E Nogreh?


Samira Makhmalbaf,  a realizadora, pertence a uma família de cineastas iranianos. O pai, Mohsen  Makhmalbaf, é um cineasta muito conhecido no Ocidente e também já filmou sobre o Afeganistão o filme "Kandahar". Os quatro filmes que Samira já rodou ganharam variados prémios, este o do Júri em Cannes. Samira não tem trinta anos. A mãe, o irmão e a irmã também realizam, escrevem, filmam. São chamados a familia Coppola do Irão. Não. É diferente. Só pode ser.