terça-feira, novembro 28, 2006

Quarta Carta

Cara amiga:

Lembrar-me de si é lembrar-me de muitas coisas. E é lembrar-me de si.
Um amigo meu tem um irmão gémeo. No casamento dele vi-o de raspão. Não são
demasiado parecidos. Tendo a palavra demasiado o significado de podermos suportar o facto de um amigo ter um irmão gémeo. Coisa esta de não gostar de gémeos univitelinos. Ele lembra-se de si, inscrita jovialmente no tempo em que jogávamos no mesmo clube. O eu ser mais velho explicará o resto, o facto de o seu marido me ter escolhido para dois telefonemas, separados um do outro por poucos meses. O seu marido fez bem. Comecei só aí a sonhar consigo. O que antes era futebol passou a indoor, não sei se me faço entender. Pode explicar isto ao seu marido, talvez ele aprenda.
Tudo isto aconteceu ainda antes de determinados sapatos vermelhos, referência cinéfila obscura até para mim, que nunca vi o filme e que nunca a vi dançar, menos ainda entoar sequer uma canção. A sua vocação administrativa para gerir o tempo que lhe resta para viver: filhos, marido, trabalho, gera em si alguma tristeza, eu sei. E sei ainda que só o drama a espera, nestes anos que vêem: virá a inevitável morte do ente mais querido, e uma vida curta a tornar-se ainda mais estreita. Saudamo-nos hoje a espaços, um que outro papel partilhado. Sei que falta com frequência, para não faltar. E que o uso dos tais sapatos vermelhos se tornou raro. Ou sempre foi?
(…)
O que atrás mencionei não roça sequer a verdade: não faço a mais pequena ideia se alguma vez sonhei consigo. Sonhos bons não acordam meninos. Pensei, e penso muito em si, isto é que é. Porque é uma mulher muito bonita, e muito boa. Porque gostamos um do outro. E porque, ao deixar de pensar em si, a sua leveza contagia-me e o seu abdicar dá-me um certo sossego, levando-me a suportar esta outra espera em que vivo, já que na minha vida não se adivinham dramas, nem irá morrer ninguém nos tempos mais próximos. Eu sei que tenho sorte.

Obrigado


W.

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