quarta-feira, abril 19, 2006

O Chifrudo

Era Domingo de Páscoa, e a oferta gastronómica em Castelo Branco não devia ser grande. Em viagem tínhamos parado ali, naquele largo dedicado ao estacionamento e onde se anunciava em restaurante com um nome prometedor: “Jardim do Paço”. Pouco antes ficava o celebrado Paço Episcopal e seu jardim, bem como um tal de Parque da Cidade, optimizado pelo projecto Polis, essa epidemia.
E porque a primeira frase? O restaurante tinha duas (pequenas) salas para sentar e comer, assim chãmente dito: na de “dentro” dois numerosos grupos faziam o pleno. Na de fora, supomos que café e snack bar nas horas vagas, mesas formicadas e debruadas a toalha de papel esperavam pelos clientes. A ocupação desta sala, a de acolhimento, era de uns 50%.
Sentámo-nos. A carta veio acompanhar-nos em quinze minutos, vinte para se fazer o pedido.
Pouco depois para as minhas traseiras entrou um grupo de brasileiras – eram quatro – apascentadas por um homem, português este. Era a saída da Páscoa delas. Supomos que foi por isto que Ele se submeteu à tortura da cruz, etc., etc. Não vejo aliás outra razão, confesso. A não haver Páscoa, estas meninas não teriam saído da casa onde cá viviam, municiada com gradeamento preventivo e nada mais do que camas onde trabalhar.
Vi-as pouco, a elas. E não digo isto por retoque de comportamento mas sim porque estavam costas com costas comigo, o que dificultava a rotação, por discreta que esta fosse. Ouvi-as bastante. Umas falavam, outras não. A da extrema quem me acompanhava comentou: “Tem a cara mais triste!”. Tratava-se de uma mulata de cabelo esticado e a tender ao louro, olhos finos meio achinesados. Nem uma palavra disse, seria aquisição recente para o redil.
O espécimen português fazia às vezes sobrepor a sua voz, explicando as coisas, moderando a conferência, reforçando os pedidos para a mesa. Pode ter sido sugestão minha, mas das poucas frases que lhe captei uma foi: “Quem trabalha comigo dá-se bem.” De que falavam? Banais coisas, comida sobretudo, da nossa e da brasileira, ali estavam para comer, de que mais poderiam falar?
Não é frequente partilhar nem que por uma hora o mesmo tecto com uma pessoa que convictamente pensamos que devia estar na prisão e da qual temos a certeza que está armada e sabe usar a arma e não para caçar coelhos. Atrás de mim seguramente disfarçado de boa pessoa estava uma encarnação do Mal, pessoa escura e cornuda, assessorada pelo conveniente mau hálito e o cheiro a enxofre. Por isso quando terminámos – robalo bem grelhado, bifinhos de vitela trespassáveis – levantei-me e fui pagar ao balcão de forma a permitir-me no retorno à base uma boa visão do Diabo. Assim fiz. E, uma vez mais, e por defeito de visão periférica e encadeamento com o protagonista em questão, delas pouco fixei, só que eram todas negras ou mulatas, dos clientes portugas já eu conhecia o racismo apenas residual. E o homem…
E o homem de tão normal provocava pasmo. Podia ser um daqueles amigos de circunstância, corresponsável da administração de um condomínio, por ex. E... estava nervoso. É verdade. Satanás, o Chifrudo, óculos ligeiramente graduados e calva de meio corpo, gaguejava agora, subiam-lhe repetidamente as sobrancelhas, e repetia-se. “Quem trabalha comigo...”
Esperavam-nos mais adiante catorze quilómetros de desespero na A23 a partir de Torres Novas até à entrada na A1. Verdadeiramente diabólico!

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