segunda-feira, março 04, 2013

Ana Hatherly - cinco tisanas


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Os românticos diziam que a morte é o desaparecimento do outro porque na verdade como é que eu posso conhecer o desaparecimento de mim. Penso nisto e pego no telefone. Penso em ti. O que é que não se tornou um lugar-comum.



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A mulher é logo em criança educada para a prolongada tarefa de alimentação do homem.Adulta diz o resto da vida com ternura de ferro: come meu esposo come meu filho (Quando a minha filha era pequena eu dava-lhe de comer à colher. Como ela detestava sopa cuspia-a sobre a minha cara. A sopa acabava escorrendo pelo meu vestido. Mas um dia passei a dar-lhe de comer de gabardina).



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O anticaminho. Antes de jantar a conversa é por grupos. A meu lado o dono da casa fala-me de poesia chinesa. Depois fala do I-Ching. Pratica? pergunta-me. Não, respondo. Tenho o livro mas nunca me dediquei. Mais tarde quando ia já a sair ele diz-me quase ao ouvido: nada é real, sabe, nada é real.



221

Estou diante da TV. Penso em ti. Vejo a minha rival absoluta - uma mulher vulgar, de pernas curtas, busto chato. Num close-up vejo-lhe os olhos, o cabelo preto curto. Compreendo que a minha imagem pode ser completamente obliterada por uma mulher como esta, porque aquilo que eu tenho e sou até em excesso não conta absolutamente nada para ti. Porque na verdade não se ama nunca, só se deseja.



317

Estou no meu quarto. Deitada na minha camaA luz está acesa. Oiço música. Penso em ti mas não é em ti. É um tu abstracto porque a tua ausência é uma lesão incurável que se imaterializa com o tempo. Por fim adormeço. Quando acordo de manhã sinto-me feliz por ter conseguido dormir.






                                     in "463 tisanas", ed. Quimera, 2006