segunda-feira, dezembro 26, 2011

Sexta-feira passada.

Vejamos portanto sexta-feira passada. Foi um dia longo.

“Eu acho que o meu pai é bipolar.”

Existe uma fase em alguns doentes bipolares chamada “rapid cycling”, que não corresponde a qualquer entusiasmo louco em fazer ginásio e spinning, mas sim em, com diferença de horas, alternarem eles entre a euforia mais desbragada e a depressão mais extrema, algo desmedido e completamente exterior a qualquer cânone de vida. Assim os meus dias, às vezes.

“Dormi que nem uma pedra.”

O sono é a segunda vida que temos. A outra oportunidade. Uma segunda solução. O sono somos também nós, e por isso esta segunda vida que nos é dada estremece paredes meias com a primeira. Um sono escorreito, limpo, inteiro, significa que, por uma vez, a solução número dois apareceu, e logo a solução primeira, a que acontecerá à luz do dia, não andará longe. Ou isto ou que tomámos drogas leves.

Não caiu bem o café primeiro. Todo o dia tive consciência da existência de um ser vivo na minha barriga com lógica própria e algo inconveniente. O abismo e o desconhecer são duas coisas muito intestinais. Não o sono, não a iluminação directa.

“Eu falo mais aqui do que na psiquiatra.”

Ele há corpos que não se resolvem a ter uma doença definida. Espreita a mesma sob a forma de dor, de gânglios, de uma distensão ou de um aperto. Espreita e depois, solerte, recua e esconde-se. “Solerte” seria um bom nome para um medicamento. Ele há corpos que levam anos nisto. Dois terços deles estão apodados de “fibromialgia”. Dois terços são mulheres. O que só pode querer dizer que também há muitos homens assim.

“E acabou o violoncelo?”

Não há voz como a de Ella Fitzgerald. Sendo Louis Amstrong o contraponto ideal. 1956 foi um grande ano. Obrigado pela música, obrigado. Você e eu sabemos que “ele” é um mal educado, pior, um mal nascido. E que as primaveras árabes acontecem. Música excelsa que me serviria depois para mote e voltas.

“Não há sistema!”

Muito da vida devia acontecer sem um sistema por trás a guiar, a decidir, a apontar. Apuntalar. Talvez toda uma vida sem sistema, como eu por estes dias, seja um excesso e um risco. Risco que, na má ardósia de que sou feito, pode soar mal, chiar, e soa, e chia. Ouves?

Mas não há consulta que resista à falta do sistema informático. A não ser a da D. Piedade. A metastização óssea e a sua quase bela indiferença disseram-me que não se tratava de uma consulta mas de uma despedida.

“Agora que convivo com alguém que só diz palavrões!”

Temos a sorte de possuir uma língua extensa, que providencia duas e três vias para o insulto, quatro e cinco para o escárnio e o maldizer. Mas não há sinónimo para as múltiplas declinações do verbo “foder” ou para o qualificativo “filho da puta” ou esse outro ainda que é “cabrão”. Ele há demasiados.

“The clouds broke, they broke, / And oh what a break for me!”

Assaltado pelo clã do nutricionismo, esperei almoçar ouvindo Ella e Louis Armstrong. Encolhido, fetal, envolvido pelas mais quentes vozes. O que importa é sempre ouvir. Assaltado pela noção de que mais um intervalo chegava-se ao seu fim, intervalo que intervala, almocei quase em recolhimento, em poucas palavras descansado. E ouvi.

Aqueles dez euros três vezes repetidos não podiam ser meus.

“Hipogonadismo.”

As grandes casas de produção como aquela em que trabalho têm, tal uma lança, corredores que as espetam da frente para trás. Enormes e maciças estas casas, os túneis comunicantes de que falo criam uma curiosa sensação de vulnerabilidade, como se aquele monstro nos pudesse desabar em cima. O café numa mão e o caroço de um dia difícil na outra, assim fui e vim, porque hoje o café é uma máquina e porque máquinas querem que sejamos. O atraso, se houve, pode ter sido fértil. Mais bonitas há na Rádio Popular, numa interessante promoção.

Hoje a ideia que predomina é que tu faças o que eu podia fazer mas não me apetece. Oh como me aborrece este mundo de pequenos tiranetes sem tomates que se notem! Na Nova Guiné nem cinco minutos sobreviviam! E tens razão, já não há quem abra uma porta para deixar passar.

“Autumn in New York / Is often mingled with pain.”

Um tijolo é um tijolo é um tijolo mesmo que lhe chamemos um livro. E às vezes quem atira pedras, tijolos, livros, quer afinal construir uma casa, apenas o está a fazer da maneira mais original e improvável.

“The way you sing off key!”

Nem todos os dias são para cantar mas alguns destes dias merecem ser cantados. Às vezes estás parado num semáforo e abres o vidro e dizes ao condutor do lado algo muito importante e só isso conta. Depois o semáforo abre e o trânsito separa o que jamais foi unido, esse outro condutor um estranho evidentemente.
Mas a vida não pode ser considerada em vão enquanto houver um sinal de luzes para fechar o dia.