Ano Cinquenta.
Os meus pais fizeram cinquenta anos de casados. Foi ontem, na matriz de Ovar. Após alguma negociação, os dois concordaram em ir. O meu pai nunca foi de missas nem de crenças. A minha mãe sofre hoje em dia de uma religiosidade algo tardia mas que, suponho, é um bom refúgio para os seus setenta e dois anos onde não tem quase mais ninguém com quem falar senão deus e os santos e os anjos.
Já não punha os pés numa igreja desde o último baptizado ou casamento a que assisti, quando foi, nem sei. Não foi um bom dia para voltar. A missa das sete da tarde de sábado parecia povoada por uma pequena multidão de resistentes ao holocausto, de tão animados que estavam. Havia um coro - também de resistentes ao holocausto – que cantava sob as ordens de um homem com umas calças de ganga horríveis tipo genéricos, krka ou gp ou bluefish, e que ameaçava cair para a frente sempre que se dirigia ao público para os incentivar a cantar. Obrigado à primeira fila pela ocasião festiva, embaraçava-me não participar nos dizeres que o ritual da missa obriga, o acto de contrição, o credo, o pai-nosso, os cânticos. Fui percebendo, à medida que a cerimónia decorria, que não queria ali voltar nem nos próximos vinte anos. Até simpatizo com o pároco, nativo de Oliveira de Azeméis que, para variar, tem feito mais pela terra que os nativos. Não parecia entusiasmado com a cerimónia a que presidia; a dado momento a minha filha perguntou: “ele está a chorar?”, enquanto eu de vez em quando me perguntava se ele estava a dormir. Soube dizer o nome dos meus pais, e veio junto deles impor-lhes as novas alianças e cumprimentar-nos. Enfim, tinha sido pago para fazê-lo. Comungaram a minha mãe e o meu pai. O meu pai tinha ido confessar-se – talvez pela primeira vez em cinquenta anos – três dias antes, sem nada dizer a ninguém. Confessar o quê? O meu pai não peca, que eu saiba, há uma década. Só eu sei que ele foi confessar-se pura e simplesmente porque não tinha lógica a minha mãe comungar e ele ali ao lado não. Pesou os prós e os contras, e foi. Assim se faz história.
No fim vieram cumprimentar-nos vários daqueles sobreviventes do holocausto que nos rodeavam. Tinha visto uma antiga vizinha minha, ex-professora primária de quem eu gostava muito nos meus quatro, cinco anos, agora decrescida, assustada, tomada também por esta coisa da devoção. Muita religiosidade nasce do mais puro medo. Mas ela não nos veio cumprimentar. Veio sim a D. Aldina e a filha solteira, rapariga com a qual na minha primeira infância eu mal falei mas ontem, com o entusiasmo até tratei por tu. Estes sobreviventes até sabiam rir! Contei-lhes a história, verdadeira, do nascer do meu sportinguismo, naquela rua Alexandre Sá Pinto - o filho duma e irmão da outra, de nome, Zé Manel, era sportinguista, e meu ídolo precoce, sendo eu filho único. Havia outro rapaz, o filho da tal professora, o Carlos, menos simpático, e que até calha que hoje é médico, então era apenas benfiquista. Escolhi o clube daquele que gostava mais. Olá Zé Manel, felizmente lembrei-me que o teu pai já faleceu há muitos anos, por ele não perguntei.
Enfim, uma cerimónia com alguns fogachos de interesse, cinquenta anos é muito tempo, lá houve parabéns, etc. Sempre pensei que os meus pais deviam ter-se separado aí há uns quarenta anos, ou trinta, hoje penso que talvez não, o muito que se fizeram infelizes um ao outro talvez hoje se compense pelo simples partilhar de uma casa, coisa que só adquire valor muito tarde mas adquire. E eu gosto muito dos meus pais.
Os meus pais trocaram, e até me pareceram contentes por isso, alianças. Só não trocaram um beijo.
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