sexta-feira, março 18, 2011

C.

C. não fala. Sorri, mas não fala. Tenta adivinhar as pantomimas que se desenham diante dela, sem dúvida simpática toda esta gente, embora não entenda bem porque insistem em que fique deitada. C. só tem viva uma irmã, e que vive longe, que é como quem diz, em Valongo. De treze irmãos vingaram três. O irmão J. foi sempre muito doente do intestino mas chegou a homem. Apaixonou-se perdidamente por uma rapariga que morava em frente, os médicos tinham-no proibido de casar mas ele insistiu e, coisa rara hoje e naquele tempo, quis uma segunda opinião. Casou e houve um médico que disse que o operava. Morreu na mesa do bloco, precisamente dois meses e treze dias depois de ter subido ao altar. Morrer de barriga aberta não é muito bonito, mas que dizer dos outros dez que não chegaram a gente…
A C.  morreu-lhe o marido há seis anos, homem de trabalho, calado e quedo. Sózinha na vida, C. voltou a aperaltar-se e a sair, a ir a uns bailes, ao café. A cabeça ultimamente falhava, a casa, pequena, em Avintes, pedia outro cuidado que ela sempre se prometia dar, mas ele era o sono ou então as lembranças, deixava-se estar, ultimamente já não saía, a cabeça às vezes como que esvaziava e ela parava à espera, um dia veio a irmã e disse que era para seu bem sair dali, está num lar vai para seis meses.
Ontem a irmã visitou-a, neste sítio onde estas pessoas, tão simpáticas, gostam tanto dela que não a deixam ir embora e insistem em que fique deitada, e dão-lhe pastilhas e injecções…  C. viu a irmã e lembrou-se, olha, tens visto E.? Tinha quinze anos e era bem bonita e já bem mulher, ele muito mais velho mas foi ela que engravidou, a natureza tem destes desequilíbrios, engravidou duas vezes, da primeira vez a irmã ajudou-a a ir ter com uma daquelas mulheres, dos desmanchos, da segunda foi sózinha, acabou no hospital, outro, este não, chamaram-lhe mentirosa, à entrada disse que era do apêndice, foi o apêndice que depois matou o irmão, ele tinha o apêndice fraco, era sabido, por isso se lembrou de semelhante alegação, o irmão não devia ter casado, nem ter sido operado, menos ainda ter morrido, bonito ele também, dos abortos só a irmã a saber, o marido nunca, segredo que irá com as duas para o caixão, diz-me, irmã, viste o E.?
C. só não percebe porque não está com ela a sua prótese para ouvir, C. lembra-se da irmã lhe ter contado como ao sair do bloco de otorrin,o com um sorriso forçado, seria?, há quantos anos foi, olha, o doutor enganou-se, operou-te o ouvido bom, agora vais usar um aparelho para ouvir, que pouca sorte, sendo um doutor… também, insistir em operar doença de família, já a falecida mãe ouvia mal, o aparelho, onde está ele, as palavras estão a voltar, e mais voltarão, planam e volteiam e lentamente vão pousando à frente de C., uma palavra, e outra, e mais outra, foi tudo um susto, ela aliás pretende acalmar toda esta gente que não pára, ele é pastilhas, ele é massagens com cremes e outros preparos, se aparecesse o aparelho, onde estará, porque não se viram para mim, dêem-me os lábios para eu ler, engraçado, só me lembro de um beijo, de um só,  e tenho oitenta anos…