A Casa Fechada.
Antigamente, os chefes guerreiros de alguns povos eram enterrados com toda a pompa devida e, numa pira funerária, queimava-se as coisas que mais próximas teriam estado, em vida, do celebrado chefe. Mulheres, o barco, as armas, coisas, enfim. Digo mulheres porque coisas eram então.
Hoje, o pai dum meu Amigo apareceu morto em casa. A casa estava fechada. Executadas as diligências para descodificar o porquê de uma porta não se abrir, saiu a carta mais temida do tarot que insistimos sempre em ir espreitar. A sequência lógica - pensei logo eu, herói por interposta pessoa - era agora atear fogo a uma casa tornada inútil, porque definitivamente vazia. Porém, não tenho nenhum direito de o escrever, sequer de o dizer, eu que, após receber a notícia, fui almoçar, ler o jornal, dar as duas ou três voltas que tinha previsto dar e no horário certo.
Tudo pode correr mal. Até a morte. Egoístas que somos, preferimos (e queremos) estar quando alguém nos morre, para assim podermos manifestamente também ali morrer um pouco, logo naquele momento, naquele preciso instante de catarse, num desfalecer paralelo e inútil, porque se espaço existia ocupado por quem vai/foi, esse espaço ficará vazio para sempre. "Porque não me deixaste morrer (um pouco) contigo?". Assim, é como se tivesse acontecido uma fuga, uma espécie de evasão desta prisão infame, discreta e eficaz como as melhores, deixando porém em quem fica esta sensação de desfazamento entre a verdadeira hora da morte, desconhecida porque não presenciada, e a hora da pancada que se leva no peito ao tomar conhecimento. Não há pancada mais fria. Chegou-se atrasado, de vez. Parece que houve um engano e já não está quem nos possa dizer que o engano não foi nosso. Este comboio não vai voltar. A estação, a casa, fechou as portas.
Hoje não se ateia fogo a nada, deve aliás ser proibido por lei. Vende-se, e sempre há quem compre. Precisamos aliás vender, comprar, vender outra vez. Não reflectimos no uso excessivo e corrente do reflexivo: vendemo-nos. Em sucessivas tomas, levas.
E nada disto tem a ver com o acontecido. Depois de almoçar tomei o café do costume e para aqui estou, a fazer-me de útil, de inadiável, de pessoa capaz.
Quando se fecha uma casa, poderá adivinhar-se que é a última vez? A derradeira? Cada homem um cofre, ao fechar a chave da porta pode estar a encerrar-se aquele segredo último, o mais interior, que nunca foi contado, sequer escrito em tinta transparente para descodificação futura. Coisas que nem a um filho se confessam, se calhar.
Invento uma vez mais, desculpa. Desculpa o uso do plural, onde me escondo.
E nada do que aqui agora parei de escrever te será útil, Nelson. Como podia? Afinal tudo corre mal. Mas até o mal é relativo. E tempos houve, e tempos haverá, em que será publicado um formal desmentido de todo este falhanço. Até lá, ofereço-te não "isto" nem "aquilo", redução que seria à minha pobre imagem do que é o teu sentir neste preciso momento, mas sim o que tu precises, o que tu quiseres.
E que eu me faça grande para te poder dar o que me for pedido.
P.S.: disseste-me agora mesmo que o teu pai escolheu ser cremado. 87 anos. Vês?
1 Comments:
... obrigado, meu Amigo!q
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