sábado, setembro 25, 2010

Manuel António Pina

COMO QUEM LIBERTO DE


Como quem, liberto de
tudo o que, a razão ou o desejo,
altera o coração,
volta aos incoincidentes sítios adolescentes
bem sabendo que os não encontrará
dentro de si nem fora de si,
e que aquilo, pouco, que do passado
lhe pertence é um sonho alheio,

assim vindes vós, palavras de amor,
primeiras palavras de novo.
Como saberei o que fazer com tantas palavras,
náufrago de palavras
na tormenta de antigos sentidos,
e de antigas dúvidas

sem outra coisa que me proteja
senão mais palavras?

Ouvis-me fora de mim
falando alto?
Que outras palavras são estas,
impronunciadas, falando por mim,
pondo-se entre mim,
as minhas palavras não deixando falar?
E estas, as palavras do poema,
fazendo de vós literatura?

Temei, palavras de amor,
há por aqui muitos inimigos novos,
sobretudo lembranças,
e desconfia-se de recém-chegados,
sobretudo vindos de tão longe
e de sítios tão incertos.
Agora os dias passam depressa
e as noites devagar
e há menos tempo que lugar.


 
 
in Nenhuma Palavra E Nenhuma Lembrança, 1999, Ass&Alvim