domingo, maio 02, 2010

Dar o braço

A torcer. Não que o personagem Gonçalo M. Tavares me passe a ser simpático. As suas entrevistas continuam a ser-me antónimas. Não que eu vá reler "Jerusalém" e mudar de opinião sobre o dito livro, que continuo a assumir como imprestável.
Ora porém mas sucede que na FNAC do NShopping, esse antro de inverdades inconsumíveis que eu frequento para abissal sublimação dos meus piores instintos, um livrinho havia a quatro euros quatro com uns contitos de gente da moda para celebrar o dia mundial do livro. O livro era giro, compraram-no. Eu ainda protestei e fui dizendo que os livros não são bonitos, são bons ou maus pelo conteúdo, e até acentuei mais o "ú" para pôr a coisa séria, e seguimos. Já em casa, e folheando quase por compulsão, e vamos passar por cima a coisa de compulsão e pulso partilharem algo mais do que letras e sílabas, e o que li gostei. Que soda! E agora partilho:

O texto de Gonçalo M. Tavares chama-se "Seis perguntas ao senhor Breton - sobre o prazer da poesia". Vamos debruçar-nos sobre a sexta resposta:

"Resposta - A poesia é um modo da linguagem ser infeliz. Se conheces um homem feliz conheces todos, alguém infeliz é que é único, exige investigação. (...)
Ou talvez mais privado: há versos que existem apenas entre um homem e a mulher, no quarto, no momento em que um finge que dorme e o outro lhe segreda ao ouvido. Ele diz um verso encostado à nuca dela e a história dessas palavras termina aí. Mas isto é um exemplo. A mulher adormeceu como nunca depois conseguiu (e dezoito mil noites permaneceu ainda viva e com sono, essa mulher). Eis que fez um verso, um dia, e não mais se repetiu. Isto é que eu digo e afirmo.
Porque os verso não valem pelos quilómetros que percorrem; que a utilidade deles não se confunda com a de um carro. Há versos que nem um metro avançam e são, afinal, lugares espantosos para fundar uma igreja ou uma maternidade.
Mas o que falta são igrejas onde os versos sejam escutados como se escutam as várias palavras de Deus. Cerimónias iniciadas em casas altas onde o poeta em frente ao grupo receoso transmite calma, e no grupo arrogante infiltra medo. A cada domingo, a população deslocava-se ao sítio onde o poeta falava (eis uma das minhas ilusões) - seria a aldeia perfeita. E o poeta falava e a população quieta, à sua frente, deslocava-se. Deslocava-se do modo menos evidente, mas mais intenso: o que mudava de sítio era o sítio onde se sente; e o verso consegue isto, e o que não é verso não o consegue. É isto que digo e afirmo.
A poesia começa em casa, abre a porta e atravessa a paisagem, digo ainda, o verso procura as ovelhas para do pescoço manso lhes roubar o sangue e procura o lobo para do pescoço feroz lhe roubar também o sangue. E a poesia avança de homem parado para homem parado, através da voz. Assim avança sobre a paisagem. Porque os homens são bípedes por cima da paisagem, e se assim o são devem-no aos versos, mais do que à coluna vertebral ou às pernas. O humano não é bípede porque se apoia em duas pernas, o humano é bípede porque se apoia na poesia (é o único animal que o faz). Tornou-se bípede para recitar os mitos e para que a sua voz saísse clara e alta atingindo os amigos e os mais afastados: os inimigos. Que o meu verso chegue a quem me odeia e assim ele perceba que nunca serei derrotado: porque falei. É isto que digo e afirmo - eu, o senhor Breton.
O homem afastou-se da estatura dos crocodilos para chamar alguém, para repetir o nome da mulher que ama. Tornou-se bípede. E o verso é isto: é uma linguagem que chama uma pessoa; uma linguagem que parece feita individualmente - como um objecto feito à mão - e oferecida também  a alguém que, sozinho, a recebe. Todos os versos são privados, e a causa principal do aparecimento da poesia é a separação dos corpos,  e a tristeza que no mesmo instante surgiu no mundo. É tudo o que tenho a dizer."