quinta-feira, abril 03, 2008

O pioneiro da psicossomática e outras histórias

Um amigo meu foi visitar um colega de profissão, mais velho, por motivos confusamente profissionais. Foi pedido “veja lá se está tudo bem, ele é um chato, não o aguento mais...”, e assim se procedeu a um domicílio.
Encontrou o senhor em questão sózinho. Após a apresentação a conversa desviou-se rapidamente para memórias e eventos antigos. O homem mais velho estava algo lentificado, não se sabe se pela doença ou por alguma medicação. Aparentemente o homem mais velho preferia estar sózinho. Ultimamente a prática profissional cansava-o imenso. Os raciocínios elaborados pareciam adequados, a informação dada a correcta. Para além de uma longa experiência profissional, algo pioneira inclusivé em algumas áreas, o homem mais velho tinha acumulado experiência em Belas Artes até bastante tarde, incluindo docência. “Tenho este problema na coluna cervical, sabe... o ano passado ao conduzir dei por mim com o automóvel a subir um monte. Como consequência do acidente... fiquei com este trémulo na mão direita mas que eu controlo perfeitamente; eu escrevo, consigo desenhar, consigo pintar...”. Efectivamente de vez em quando olhava para a mão e ela deixava de tremer.
Escrever, desenhar, pintar.
“Sobrevivi já a dois tumores na ***, fiz várias cirurgias... agora estou bem...”.
Tumores, dois.
“Preocupo-me com a minha filha, ela não fez descontos, não vai ter uma reforma como eu, agora é demasiado tarde, penso nisso todas as noites... que idade tem? 42 anos...”. “Ultimamente tenho caído com frequência, e aí a minha mulher pôs-me aqui. Uma equipa excepcional, não tenho nada que dizer... combinei ir embora amanhã e estou muito melhor!”
“Sabe, o meu problema é que amo desmedidamente a minha filha”.
O meu amigo comentou-me ter tido dificuldade em medir a doença de quem tinha pela frente em comparação com a sua, a presente e, sobretudo, a que há-de vir. Não elaborou demasiado nas eventuais sombras presentes, no pequeno delírio que ali estava, na possível fábula, recusou-se aliás a tal. Sentiu pesar-lhe também nos ombros tudo o que não sabe fazer - escrever, desenhar, pintar...
A distância impediu-lhe despedir-se do homem mais velho com um abraço.

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