sexta-feira, fevereiro 29, 2008

O Sr. Augusto

Talvez seja coincidência mas o meu amigo médico repete dia após dia que a amizade está em crise e, para exemplificar, falou-me de um caso que passo a citar: "Vê lá tu o meu amigo Augusto. Vou-lhe chamar da forma que o trato habitualmente, tendo ele quase idade para ser meu pai: sr. Augusto. Conheci-o quando passei a tratar a sua esposa, portanto minha doente. Homem vindo de África, dos tempos em que Portugal a tarde e más horas ainda teimava em mandar os seus mais aventureiros para o trópico, nem sei bem qual é a sua arte. Às vezes contava-me com evidente orgulho peças e arranjos que inventava para ortopedistas ou equiparados. Um óptimo profissional. Nada pedindo para si, tudo para os demais. Bom prato, boa piada, bom amigo. Boa gente. Está a tentar reformar-se a tempo, antes de começar a arrastar-se pelo trabalho uma sombra do que foi, pois assim há quem queira que venha a ser todo um país. A esposa, talho da mesma cepa, tem estado progressivamente mais doente, mais limitada. Não tenho podido fazer mais do que monitorizar o seu declínio. Têm um único filho. Licenciado em relações internacionais mas quase sempre desempregado, influi muito o ter um déficit visual grave cuja real etiologia desconheço, adquirido já na infância e que lhe limita e muito as hipóteses de emprego. O mimo dos pais, é um homem-criança, condicionado pelo que atrás te contei. E podia ter muita pena dele, mas não tenho. É também afinal um ladrão, tendo já roubado os pais repetidas vezes, a última a semana que passou. O sr. Augusto anda desesperado. E eu com ele também. Pediu-me para marcar uma consulta para o filho, pois precisaria de fazer umas análises. Só se fosse para lhe dar um murro."
O meu amigo médico às vezes infringe aqui ou ali a deontologia.

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