segunda-feira, julho 30, 2007

Kovadloff e o estado do Mundo

Circula na Internet uma história de Santiago Kovadloff onde ele, querendo mostrar ao filho o que é o mar, o leva ao Sul (lembro estarmos na Argentina). O filho, extasiado perante a imensidão descoberta pede: “Pai, ajuda-me a ver!”
Poeta, filósofo, escritor para crianças e colunista no La Nación de Buenos Aires, participou em 2006 no ciclo de conferências “o estado do Mundo” da FCGulbenkian, ciclo esse que hoje é um interessante livro editado pela Tinta da China. E então, já antecipadamente condicionados pela aura humanista da “anedota” veiculada pela Internet – anedota no sentido castelhano do termo – que nos diz este senhor?
Começa: “Embora não pareça, o homem, naquilo que tem de criador, não provém do passado, e sim do futuro. Provém do futuro, provém da sua expectativa, e dirige-se dele ao presente, isto é, rumo ao presente a partir da convocação que lhe fazem os seus projectos.” Assim sendo, somos o que sonhamos, o que almejamos e queremos, e desse futuro sonhado descemos aos dias de hoje para erigir as transformações necessárias. A translação que se faz a seguir é a de que se não sonharmos, o nosso presente perde sentido já que não existe futuro perseguido. Ou o que pode acontecer ao futuro do sujeito que não sonha: “a crescente volatilização do cidadão em favor do consumidor”. Por outro lado, a ausência de um futuro pode impelir-nos para a defesa de um passado e da sua putativa eternidade ou imutabilidade, donde o ressurgir da “angústia perante a diversidade imposta pela figura do estrangeiro”, fonte da diferença. Não sabemos para onde queremos ir, e tudo nos parece estranho, perdidos no meio de uma caverna sem luz. Tudo o que nos toca é portanto literalmente mal-visto e rejeitado. E mais é dito: “Um homem privado de subjectividade é um homem privado de discernimento”. Sem futuro por cima que nos guie, é o presente que nos resta um acumular de factos, de títulos em letra gorda, de agressões que consumam a ideia de “trauma” que atravessa este ensaio. O homem é um ser cego, perdido e que vive à defesa.
Em seguida Kovadloff caminha pela necessidade de uma nova “consciência planetária” para uma adequada convivência com a Natureza. Mas uma vez mais, roda para o homem ao afirmar que: “Uma nova valorização da Natureza não se produzirá enquanto o homem não for capaz de transformar a compreensão de si próprio.” E adiante afirma esta melancólica certeza: “Hoje sabemos.” E o quê? Que sempre a semente do conflito, a agressão e a guerra serão uma real possibilidade. E conseguimos prolongar a vida sem sabermos por definição o que ela é. E aqui temos outro duplo traumatismo, o de vivermos agressivamente porque assim o somos, e de nem bem sabermos porque vivemos (e cada vez mais). E é o “contrato social” uma tentativa incompleta de produzir um freio à inevitabilidade do conflito. Cita-se Cortázar: “devemos viver combatendo-nos.”. E afirma-se que: “O universo de substituições indispensáveis a que chamamos cultura evidencia (…) a sua fragilidade, embora só nele o desejo de humanização possa encontrar uma configuração”.
Daqui parte Kovadloff para a parte mais positiva do ensaio ao falar de uma “luta defensiva e ofensiva ao mesmo tempo”, e que o “homem esperançoso não é o que acredita que amanhã as coisas vão melhorar. É, pelo contrário, aquele que percebe, num presente de escuridão homogénea, nuances e cintilações que lhe evidenciam que a realidade não é uniforme” Afinal, a esperança é hoje.
Rodando uma vez mais, o autor lança-se sobre a definição do saber e sobretudo da ignorância. E é dito: “Em todas as faculdades formam-se, ano após ano, professores, licenciados e doutores. Mas nelas não se formam, rigorosamente universitários. A palavra universitário, na sua primeira acepção, traduz, como se sabe, a ideia de universalidade(…).” Donde que hoje não há universitários. Portanto: “”São fenómenos inteiramente diferentes e até contraditórios o facto de oferecer profissionais a um mercado de trabalho e o de capacitar indivíduos para que saibam agir como cidadãos cultos”. Fazendo o circulo, pertenceria ao universitário a tal visão de conjunto que promovesse a alteridade, o privilégio das diferenças “mais subtis”, a prossecução de uma “consciência planetária”. Tarefa impossível quando a actual noção de progresso “está muito mais encaminhada para a produção de consumidores do que de cidadãos, como bem o evidencia a actual crise de sentido que envolve as democracias ocidentais.” Faltam então, paradoxalmente universidades, daquelas do antigamente onde se ia beber o saber todo, de forma a que os olhos sofressem uma mutação decisiva. Este clic mental hoje não acontece. Sem a cultura universitária as noções de sensibilidade, complementaridade, solidariedade e humanismo desaparecem. E é dito: “Sartre não tinha razão: o inferno não são os outros. O inferno é o narcisismo que condena aos outros.” E aqui o raciocínio encaminha-se para a análise desta fase de recuo da democracia em que vivemos perante a vontade de poder que não se compadece com o voto partilhado e com a noção fundamental da igualdade entre todos os diferentes. E atinge-se a afirmação mais trágica: “Se não nos precavermos, acabaremos parecendo (e não sendo) humanos; celebrantes cegos do gozo tanático e não do prazer.”
Como epílogo Kovadloff termina defendendo que a destruição pelo empobrecimento progressivo do idioma no nosso uso quotidiano é um sinal de tudo o que atrás se disse. Um idioma mais pobre reflecte uma sociedade mais uniforme. Um maior conjunto de diferenças precisará de mais palavras para ser enunciado. E as últimas frases são a súmula do que foi sendo dito, por um homem entre os homens “esperançoso”: “Somos quem somos na medida em que não formos o mesmo ser. Só na medida em que não formos o mesmo ser é que podemos ser semelhantes. Se podemos reconhecer-nos uns aos outros é porque não somos iguais. O nosso parentesco está garantido pela irredutibilidade de uns aos outros. A nossa fraternidade nada tem a ver com a tolerância, essa manifestação gentil da indiferença; ela só pode nascer do recíproco amor às nossas particularidades. O milagre radical, na nossa espécie, consiste, para cada um e para a consciência de todos, em ter sido um por uma única vez”
Brilhante.

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