terça-feira, maio 16, 2006

O enigma de Natália Correia


POESIA: Ó VÉSPERA DO PRODÍGIO IV

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é étero num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.

NATÁLIA CORREIA, Sonetos Românticos (1990).


Açoriana da Fajã de Baixo, São Miguel, nascida a 1923 e falecida em 1993, ainda sem os 70 feitos, Natália Correia et pour cause ou malgrait elle, dominou a cena intelectual lisboeta durante 30-40 anos. Poesia e prosa e escrita de teatro superlativos, com recursos e ginásticas cuja genuflexão não será bem da minha quinta, tem porém saltos mortais no escrever que subjugam. E assim terá andado Lisboa, subjugada por esta mulher-diva, soberana de sítios e de vozes, afamada em ser lindíssima.
Fraco eu e necrofílico, bem tenho procurado a razão de tal iluminação, atestada em por ex. testemunhos tão insuspeitos como os de Mário Cezariny. Esquecendo questões de índice de massa corporal, os olhos e a boca seriam as lanças de uma permanente guerra que era o não deixar indiferente ninguém. Era essa a função, o órgão, o muro contra o qual. A explicação. Ser um bicho. E não querer ser. E não deixar de ser. Assinatura. Devoção.

Ah, e o poema acima, saído do seu livro de poesias último (creio).

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