Sobre um suicídio e outras merdas.
Há uma meia dúzia de anos um médico meu conhecido foi a uma consulta com o seu pneumologista para rever uns exames que tinha feito. Este médico de que falo já tinha mais de sessenta anos, ainda não se tinha reformado por aquela coisa de ser a medicina um traje difícil de despir. Uma tosse aborrecida, uma pontada, um cansaço. Um cancro do pulmão de respeito. O médico de que falo, galego como poucos, disse duas chalaças e apertou a mão ao pneumologista, conhecido de anos. Disse ainda que "pronto, vamos lá tratar isto!". Dirigiu-se ao seu gabinete, abriu a janela, saltou. O hospital onde fiz intensivos é alto, dele apanha-se uma boa vista da ria e de Santa Cristina. A história pode não ter sido bem assim, mas o "osso" foi.
A primeira vez em que me defrontei com a noção, a possibilidade do suicídio, foi através da peça "Português, Escritor, Quarenta e Cinco Anos de Idade", escrita por Bernardo Santareno e compreensívelmente só representada depois do 25 de Abril. Semi-autobiográfica, o autor foi representado na peça por Rogério Paulo, com aquela maldita voz e aquela maldita cara que fizeram de Rogério Paulo um monstro em palco. Nada comunista eu então e hoje, a peça ficou comigo, bem como o suicídio final do personagem, para que ao menos a última decisão dele fosse. Morrer, verbo que é bem mais do que a morte, que por definição não há, pode ser a única decisão que nos resta quando julgamos já estar tudo decidido - e perdido. Não é a vida um jogar incessante, nem que sempre nos pareça estarmos no banco da vida a olhar para o campo, a olhar, a olhar, os outros em jogo e nós nunca?
Diferente é quando alguém bem mais jovem do que eu, e a fasquia da juventude transporto-a eu comigo e comigo tem vindo a envelhecer também, repito que é diferente quando alguém bem mais jovem do que eu decide terminar com a vida. E a diferença está em - "porque ela e não eu?"
Viver o que é? Ainda há pouco um rapaz meu conhecido definia-me aqui o jazz em três penadas, "música com swing", já lá dizia a canção. Lembro uma vez numa praia ouvir que aquilo sim, é que "era viver!". Nessa praia o mar era todo o swing necessário.
A cada um a sua vida. Uns dirão: "a minha vida é olhar para o mar, e tudo o resto que faço nos intervalos em que o mar não está!". Mas a vida tem essa inexorável lógica de projecto em marcha, em aberto. E em frente assume-se - há caminho! O projecto pode ser o mesmo mar de que falei, o sol, os dias que abrem - como estão a abrir neste radioso e frio fevereiro donde escrevo. Os elementos, que mais, dizia o Clooney.
Porque não eu? A razão mais simples e óbvia é a filha que tenho. Não consigo descer para este que não é papel mas um ecrã de computador tudo o que a minha filha me dá. Mas deixo quem aqui não repousa. E volto aos sentidos. Que ainda não os tenho assim de cansados. Eu quero ver mais, e tocar mais, e cheirar mais, e ouvir mais, e mergulhar a mão onde. Sei, eu sei, que destas coisas as minhas bibliotecas ainda não estão completas. Também hoje conheço mais amplamente de que males padeço, donde fujo, para onde quero sempre ir. Refractário, penso e penso e penso que penso. Curto de mangas e portanto de truques. E para sempre esboço.
Respirar tinha nos tempos antigos uma lógica mágica, era o "sopro". Nem sempre respiro igual. Logo estou vivo, e quero viver mais. Porque este sopro imparável empurra-me para a frente, e os nós da vida, afinal, servem-me de apoio e com eles disfarço e até parece que subo.
Outra coisa: rir. A vida de tão absurda é muito cómica, não é? Portanto, o riso. O rir que nasce da curiosidade, da graça, de uns olhos que procuram, de uns ouvidos que ouvem. Rir é viver mais. Algumas vezes rimos os dois, Susana, vai para alguns anos. Chegámos.
Sabes bem, Susana, que não devo e não vou falar de ti, porque não sei quem tu eras e as suspeitas esbarram no teu dia de ontem. Acabei de explicar porque estou aqui a escrever e não perdido da vida como tu. Falei demasiado de mim quando o dia de ontem tornou-se para sempre teu. Mas, o que dizer? Disse portanto, para ganhar tempo, de mim coisas vazias e, algumas até, sem qualquer sentido. Muletas para um pobre viajante. Devo agora calar-me.
O teres morrido é para mim inexplicável. Parece-me também tremendamente injusto.
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