terça-feira, dezembro 29, 2009

Mais Europa.


Vai ser este o enésimo texto sobre a Europa, o seu futuro, etc.


Mas não vou opinar. Vou apenas contar uma história, e expor algumas coisas através de dois livros que nesta minha casa foram recebidos de presente, por estas alturas.



O ano passado, pelos Reis, um cunhado meu, pintor, ofereceu-me um livro originalmente francês mas traduzido para galego e que se chama “Descubrir a arte a través do mundo”. A editora, viguesa, “Faktoria K de libros” produziu um livro-quase-objecto que, com textos simples e enxutos, mostra arte proveniente de dezoito sítios do mundo, apenas três sendo europeus. Os exemplos europeus são a “Primeira Bíblia de Carlos, o Calvo”, do séc. IX, um ícone da Virgem do séc. XVI, russo, e a “Vitória de Samotrácia”, conhecidíssima escultura grega dos séc. II-III a.c. As restantes peças são também lindíssimas, desde as iluminuras persas, os gravados chineses e japoneses até aos códices aztecas e os toucados de penas amazónicos. Um livro lindíssimo. E porém, porém, porém... pode naquelas três peças resumir-se a formidável e objectivamente única aventura da arte europeia? Não seria o objectivo deste livro menorizar esta, ou reflectir sobre a mesma. Quem reflectiu e pensou fui eu!

Este ano um casal amigoferecereu pelo Natal à minha filha um livro originalmente sueco mas traduzido para português onde espreitamos treze famílias a viver em treze cidades do mundo. As cidades são “europeias-de-cima/norte” – Estocolmo, Berlim, Varsóvia, Moscovo, Reikjavik, e as obrigatórias Londres e Paris, aqui o único casal gay do lote.

Depois o resto do mundo fornece escolhas óbvias: Shangai, Bombaim, Nova Iorque, Johannesburgo, Sidney. Falhou Tóquio. Finalmente uma escolha atípica – Valparaíso, cidade portuária do Chile onde um casal de artistas fez reviver uma casa relativamente modesta. As outras casas são tudo menos modestas, em nada servindo para exemplificar os locais de origem. Por exemplo, o casal de Bombaim consiste num industrial semi-reformado e sua esposa, ocupada em decorar o seu discurso para o Rotary Club local. O seu duplex tem 300 m2 no total e 90 m2 de terraço, o habitual em Bombaim, como sabem... O casal de Johannesburgo, o típico casal misto, ele alemão, vive num condomínio fechado – muito fechado mesmo – com piscina, jardim, all the comodities... A esposa, chefe de pessoal numa empresa de segurança (!), preocupa-se muito com a pobreza africana e diz ajudar todos os que "vivem ali perto" – mas, rapariga, tu conheces alguém no teu bairro?
O resto da malta? Designers, pintores, actores, corretores de bolsa, estilistas, empresários, you name it. Boa gente, não discuto. Claro que as casas são na maioria muito bem decoradas e no geral muito bonitas, bem aproveitadas, etc.

Neste livro é curiosa a completa ausência do Mediterrâneo, o destino europeu de férias por excelência desde a antiguidade! E tudo o que não é “Europeu-escolhido” é de enclave. Claro que há muito multiculturalismo, certo, mas em Berlim, por ex., não no sítio de onde ele partiu. Os Outros aqui são poucos, muito poucos. A diferença é realmente discreta. A aldeia é global porque virtual, inexistente. Ou pelo menos muito minoritária, élace! Encontramo-nos todos no Centro Comercial mais próximo. Na contracapa o livro sublinha "todos iguais todos diferentes". Há que descodificar. Este livro se calhar também não pedia esta reflexão. Fi-la eu.

Entre a Europa que tem medo da sua terrível e fantástica História, cujo manto de glória é a Arte Ocidental, paroxismo de inquietação, e uma Europa idealizada que só se revê nos espelhos iteradamente recriados à volta do globo, o coração, ou melhor, o cérebro, ou melhor ainda, o medo ancestral do caçador de peles europeu balança.