terça-feira, maio 09, 2006

Do Iberismo

Comentadores portugueses assistem entre o atónito e o confundido à sucessiva discussão e aprovação (ou não) dos estatutos de autonomia da diversas comunidades da Espanha.
Ao mesmo tempo saltou a proverbial indignação quando o ministro Mário Lino foi a Santiago de Compostela declarar-se um "iberista".

Boy, what a mess!
Já escrevi sobre estas coisas algumas vezes mas, correndo o risco de me repetir, aqui vai.

Primeiro: a Península Ibérica é, tem sido, casa para múltiplas histórias, povos, aventuras, com muita mistura, confusão, etc., logo após o colapso visigótico às mãos de Tarik. Tarik não conseguiu entrar em terras dos francos porque foi parado por Carlos Martel, já para lá dos Pirinéus. Navarra, e os embriões de Aragão e Catalunha foram as Marcas defensivas deixadas para cá dos mesmos por campanhas lideradas por Carlos Magno. Navarra aliás, foi durante muito tempo um reino com ligações ao lado de lá dessa grande barreira montanhosa. Neste entretanto, Euskadi (as Vascongadas) existia como singularidade genética (meio real meio inventada) e linguística entre Navarra e uma Castela por nascer. Sabiam que o Castelhano antigo sofreu influências do euskera? Ao mesmo tempo, também de uma forma um bocado mitológica, a resistência autónoma Asturiana (Pelágio, etc) ganhava um espaço que rapidamente progrediu até ao Douro: Leão, Galiza, Cantabria e Castela. Castela como Galiza áreas de crescimento de um reino habitualmente uno, o Leonês.
Segundo: este reino Leonês nasceu polissémico, ou melhor, poliglota: nele falavam-se galego, leonês, castelhano antigo e, na extrema, euskera. Podemos considerar isto uma idiosincrasia de um norte peninsular montanhoso e com difíceis comunicações, mas por exemplo no século XIX a Península Itálica era ainda linguísticamente um mosaico de dialectos e não uma manta uniforme (é ler Pasolini): italiano sim, mas qual deles?

Terceiro: as gentes, e as línguas, cresceram na península com a (re)conquista de norte para sul do território, embora não preenchendo um espaço em branco deixado pelos muçulmanos mas sim abrindo um terreno de mistura progressivamente maior, e eis porque todas as línguas acima em maior ou menor grau adquiriram vocábulos árabes.
No reino Leonês o ducado de Castela e com ele o castelhano foram adquirindo progressivamente maior importância. Antes da invenção da capital Madrid (Madrid tem, julgo, menos de 500 anos de idade...), as cidades do reino mais importantes já eram castelhanas: Burgos e Valladolid. Com o passar dos séculos o castelhano foi ganhando primazia sobre o leonês, até quase o aniquilar. O leonês é hoje um dialecto falado esparsamente aqui e ali em algumas montanhas e aldeias. Em Portugal toma o nome de... Mirandês!
O euskera ficou sempre amarrado aonde estava, muito porque Navarra raramente participou no esforço de conquista.
E o português/Portugal? O português é o prolongamento natural do galego/Galiza. E não é preciso dizer mais. A Galiza, zangada com os seus condados do sul, isolada do grosso do poder castelhano-leonês pela muralha dos Ancares e o atavismo dos seus nobres, foi ficando cada vez mais periférica, e escondida, e assim a sua língua. Portugal pelo contrário, prosseguiu o seu caminho para o sul (logo 4 anos depois da independência ganhava a sua capital Lisboa) e desenhou quase à perfeição nas suas fronteiras esta história de tiras de língua/gente, norte-sul, desenhadas ao longo de uma Península/"subcontinente".

Quarto: e o que tem o catalão de tão especial? As Vascongadas e a Catalunha são as partes de Espanha mais anexas à Europa/França. Desde sempre buscaram e conseguiram um grau de diferenciação e desenvolvimento económico superior ao resto da Península. Isto aplica-se sobretudo à Catalunha. Quem houve falar do antigo reino de Aragão não sabe que os seus reis foram quase sempre os condes de Barcelona. Aragão cujo espaço completo compreendia a actual Comunidade Valenciana e as Baleares, zonas hoje catalano-falantes. País com uma lógica mediterrânica, possuindo durante séculos Nápoles e a Sicília, potência maior do Mediterâneo Ocidental. Os Reis Católicos mais não fizeram do que unir dois eixos divergentes, Valladolid-Sevilla, com Barcelona-Valencia, e assim criar de dois países um, apertando no caminho a tenaz e conquistando Granada. Três em um, portanto. Quatro em um entre 1580 e 1640.
O catalão representa a dinâmica de um povo, podemos chamar assim, peninsular que entre outras coisas criou de raíz a cidade economicamente mais dinâmica do quadrilátero, Barcelona. E culturalmente nem se fala: Gaudi foi uma vez preso por, julgo eu, falar catalão em público...

Quinto: Espanha, nação de nações. Frase que se tornou famosa pouco depois da transição. E que levanta questões tanto de auto-consciência e reconhecimento das gentes, e por outro lado puramente etimológicas: o que é uma nação?
A questão linguística é uma forma grosseira de aferir as fronteiras nacionais: Bélgica? Suiça? É pena que o grosso dos portugueses desconheça (e muitos dos seu jornalistas pseudo-peritos idem) que a promoção do galego na Galiza não é um mero "gesto simbólico" mas sim a reparação de uma "doença" de séculos, e o aggiornamento da nossa língua-mãe. O galego é falado por toda a Galiza rural e muita da urbana. Seria uma longuíssima história explicitar porque não se fala ainda mais galego na Galiza.

Que nações há hoje então nesta nossa Península? Aquelas que se decidem reconhecer como tal... o que digamos até é democrático! Catalunha, Euskadi, Galiza, provavelmente Navarra/Nafarroa, Portugal e... Espanha! Uma Espanha que nasceu como associação de nações (Leão e Castela, Aragão e Granada) que pode ser inclusiva hoje de outras nações, na exacta medida que hoje as fronteiras interessam cada vez menos, e a multiculturalidade cada vez mais... Ou não...

Etiquetas: ,