O Elogio da Viagem.
Cesariny citava Pessoa ao escrever: "Eu não evoluo, viajo."
Recentemente perguntaram-me se os meus vinte anos, porque longínquos, não me pareciam um sonho. Respondi que não, e por um bocado acreditei nesta negativa. O não tem a sua volúpia. O ano de 1984 não me pode parecer a mim outra coisa que não um sonho, embora... Lembro mal o passado, o meu. Lembro mal o passado dos meus mais queridos também. Repito isto para referir que mal me lembro do ano de 1984, para seguir o exemplo. Ao lembrá-lo teria de o reconstruir, inventá-lo um pouco, ou bastante. Assumir que, conhecendo os protagonistas de então, houve isto e aquilo. Assim lembramos os sonhos, como farrapos de luz ou sombra. Agora parece-me que a asserção alheia sobre o sonho arrastava outro argumento, o da irrealidade, como se nos parecesse impossível que aquele ano, 84, o ter tido vinte anos, nos/me pudesse ter acontecido. Por aí não vou. Ainda que esquecido, esse ano - como outros - foi muito real, duro, espesso, ou a espaços frágil cristal, ou a espaços um vazio cheio de sons incompreensíveis. Aprendia eu então, tarde e a más horas - não explico mas era assim - o que fazer na vida com os materiais que me tinham sido dados. A sensação era de uma escola nocturna, mas de dia, duplo paradoxo. Sei que era assim, embora tenha perdido os negativos do filme quase todo. De então para cá houve não uma fluida evolução mas saltos (no escuro), mergulhos (na fria água), bruscas subidas (que não de cotação), obras sobre obras, desafios à lei da gravidade e às outras... Às vezes, com a separação de meses, era como se tivesse saltado para uma realidade paralela, de um comboio em andamento para outro comboio situado noutro país, ao lado mas outras as cores, outra a bandeira, podendo ainda ver como que um fantasma da minha actividade passada na carruagem que se abandonou. Viagens. A viagem. Do meu não saber actual, parelha e relutante amigo do meu não saber de antes, de quando tinha vinte anos, resulta esta óbvia sensação de que não evolui.
Viajo.
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