quarta-feira, julho 28, 2010

Notícias do bloqueio, versão extensa.

Sou muito bom a inventar títulos para livros. ""A volta dos tristes" seguido de "Mais ou menos"", eis uma das minhas colectâneas de insucessos.
Lembro-de da volta dos tristes, era assim, o Opel Kadett que o meu pai conduzia levava-nos primeiro até ao Furadouro, podendo ou não acontecer visita ao talho que o meu avô explorava na Avenida Central. Era um estabelecimento pequeno, arrendado, que permitia a alguém viver nas traseiras se quisesse, acontecia ao meu tio Mário todos os verões, assim o talho ficava aberto na época de banhos. O edifício onde ficava o talho está hoje trucidado.
Não falhava a subida até à marginal, o meu pai levava-me sempre a ir espreitar o mar. Nunca me dediquei a perceber a relação do meu pai com o mar do Furadouro, o seu vento, as suas ondas. Lembro-me ainda de o ver como um veraneante elegante, mais do que eu, vestido de cores claras, o meu pai é ligeiramente mais alto do que eu e mais seco e erecto, e tinha um caminhar certo e não indeciso. Na marginal do Furadouro não caminhava rápido como em outras ocasiões, motivo de certo conflito familiar. Conheço ao meu pai apenas uns únicos óculos escuros, que lhe ficavam particularmente bem. Julgo, mas não juro, que os vi nele não só para conduzir. E porém nunca vi o meu pai de calções de praia, nunca ele se atirou a uma onda, o meu pai não sabia nadar, sendo a praia um espaço apenas para contemplação e esquecimento, na escola do que eu sempre vi o seu pai, meu avô, ou os seus irmãos fazerem. Uma das histórias clássicas é o meu tio António, das pessoas mais peludas que eu já conheci e ainda mais careca do que eu, chegar ao areal, arriscar-se sim a colocar-se em calções, deitar-se.. e adormecer toda a tarde, como um animal abandonado ali por alguém, um urso ou equiparado.
A volta dos tristes tinha sempre a segunda parte que era a visita ao Areinho, na ria. A longa curva para a direita que nos introduz no Areinho, praia fluvial há décadas a sair e entrar na ruína, pertence aos postais ilustrados que carrego em mim desde miúdo. Ali a ria começa realmente a acontecer, a ser mais do que um canal em vias de eutrofização definitiva. E à direita ainda está um pasto grande com uma pequenina casa no meio e que converge até ao que já foram dunas, agora muito alteradas por séculos de evolução ecológica e transformação humana. Afundas um pé e é areia, como aliás quilómetros para dentro no meio de Ovar acontece. O Areinho tem duas ilhas artificiais, uma delas hoje completamente abandonada e que nunca teve muito uso, a outra com um restaurante desenhado nos anos 70 pelo arquitecto Januário Godinho, e que nunca teve muita sorte. Continuo a achar ser dos restaurantes mais bonitos que conheço. O carro estacionado, saíamos e íamos dar uma volta à ilha onde o restaurante se situa. Nunca lá entramos para beber um pirolito, tomar umas águas, petiscar o que fosse. Em vinte e cinco anos de convivência, excluindo as "férias" anuais enquanto as houve, programadas, nunca os meus pais sairam para ir a café, restaurante, nunca, excepções contadas duas ou três.
Quando pequeno o meu pai levou-me algumas poucas vezes à praia do Furadouro domingo de manhã. Isto queria dizer ele sentar-se no areal, dormi, levantar-se e ir passear e correr a beira-mar, no entretanto eu fazia o que muito bem me apetecesse. Ao voltar tomava alguma coisa no Progresso, que ele pedia para mim e era obrigatoriamente um bolo de arroz e um galão. Sempre achei o bol de arroz uma pastelaria muito triste.
A expressão "volta dos tristes" não foi inventada pelo meu pai mas assentava-lhe como uma luva. Nunca me pareceu que ele soubesse muito bem o que fazer com a vida, a sua nomeadamente, e já agora com aquelas que o rodeavam. Conheci-o sempre como que zangado, uma forma de estar que só décadas depois foi amaciando, pouco a pouco. Como que ao aproximar-se a velhice afinal ele tivesse chegado à conclusão que sobrevivera, e pronto. Por outro lado, julgo que a compra e recuperação da casa onde ainda hoje vive pode ter sido considerada por ele uma pequena vitória, uma última pequena realização. Outras coisas depois se sucederam, a minha digamos estabilização familiar, a neta. A neta Catarina, luz dos olhos de tanta gente, brilhantes variáveis mas sempre intensos.
A sua zanga é a minha, de alguma forma. Não que eu me ache desequipado por igual, sendo os nossos mundos tão diferentes, as experiências tão singulares. O meu pai nasceu numa família de origem pobre e que se remediou, de muitos irmãos. Eu nasci filho único numa família feita pequeno-burguesa numa vila dali de trás, que me deu tudo o que eu precisei sem excepção, embora contado. E porém, à vida às vezes não consigo dar a volta devida, por que a mesma não acede, ou porque a mesma volta das mãos não me sai. Falo com a vida minha como se vida tivesse e também me zango, e estou zangado aqui e ali, em paroxismos que são afinal de impotência, nem mais. Que logo passam. Ou que escondidos sobrevivem e vão escorrendo e circulando por aqui, artérias, capilares, veias, esta volta que o sangue dá e torna a dar e que não deixa de ser um triste recordatório de como tudo circula e roda e volta ao ponto donde partiu - ainda anteontem fui sei lá porquê pôr uma encomenda aos correios do Carvalhido... - e porém nenhum ponto é igual ao que já foi, a electricidade é outra, a declinação das cargas difere, passou para o outro lado sem que reparássemos, e as devidas medidas não foram tomadas, vejamos por ex. o meu caso.

p.s.: o Kadett do meu pai era verde-claro. Ainda há pouco tempo era conduzido por um sobrinho dum primo meu, pelo que sei, ou assim.